Capítulo 24

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Clara entrou no quarto dos filhos com uma pilha de roupas para guardar. Ela gostava de vez em quando de fazer isso pessoalmente para arrumar as gavetas e colocar saches perfumados.
Abriu a gaveta da cômoda e começou a fazer a arrumação. Os dois rapazes conversavam animadamente no banheiro:
—Acabe logo com essa barba que eu preciso do espelho.
— Para quê? Essa penugem de bigode não precisa tirar — respondeu Marcos em tom de brincadeira.
— Penugem? Pode ser, mas sou mais corajoso do que você. Não fosse por mim, pelo meu charme e meu violão, Eunice nem teria se aproximado de você.
— Você que não viu como ela se jogava em cima de mim cada vez que alguém subia a escada.
— Claro, não tinha espaço. O que queria que ela fizesse?
— Ela ainda vai entrar na minha, pode esperar.
— Você está mesmo caidinho! Por que não fala logo e pede para namorar? Vai demorar muito nesse espelho?
Clara sorriu ouvindo o barulho da água.
Marcos havia se tornado um bonito rapaz e mesmo sendo um pouco tímido era natural que chamasse a atenção das moças. Eles continuavam conversando.
— Você viu Marta?
—. O que é que tem?
— Aonde o pai vai, ela vai atrás. Fica em volta para adivinhar tudo que ele quer. Aí tem...
— Não seja malicioso, Carlinhos. Ela trabalha com ele. É natural que procure agradá-lo.
— O que não é natural é a maneira como ela olha para ele. Acho que está caidinha!
O pai é um pouco passado, mas ainda impressiona as mulheres. Não viu como suspiram quando ele passa?
— Vi, mas ele não liga.
— Mas com Marta ele é muito delicado. Qualquer hora eles vão se entender, você não acha?
— Agora que você me chamou a atenção, me recordo que na semana passada, quando entrei na sala, ele estava debruçado sobre a mesa examinando alguns papéis e ela olhava
para ele com muito carinho. Sabe que você pode ter razão?
— E se eles se entenderem, o que faremos? Nada. Ele tem todo o direito de refazer sua vida. Depois, ela é uma mulher muito especial. Tenho certeza de que o fará muito feliz.
Clara colocou a roupa de qualquer jeito na gaveta e saiu. Sentia-se inquieta, irritada. Seus filhos estavam falando do namoro de Osvaldo com outra mulher.
Foi para o quarto, fechou a porta e sentou-se na cama, pensativa. Durante todos aqueles anos imaginara que isso pudesse acontecer.
Afinal estavam separados e ele era livre.
Havia se preparado para essa realidade. Pouco lhe importava que ele se relacionasse com outra. Ficaria até aliviada do peso da culpa de ser a causadora de sua solidão.
Mas, ouvindo aquela conversa, não foi alívio que sentiu mas uma inquietação irritante, desagradável.
“Bobagem”, pensou. “É melhor que ele tenha esquecido o passado. Assim posso ficar em paz.”
Mas a sensação inquietante não ia embora.
“Devo reconhecer que me envaidecia pensar que ele nunca mais amou outra mulher. Claro. E só vaidade que me incomoda. Pois para mim ele pode se casar com quem quiser.”
Foi ao banheiro, arrumou-se e desceu para ver o jantar. Marcos já estava na copa conversando com Rita:
— Estou com fome. Vai demorar?
— Não. Está pronto. Estou esperando Carlinhos e sua mãe descerem para mandar servir.
— Eu já estou aqui — interveio Clara.
— É melhor não esperar Carlinhos. O banho dele é muito demorado. Eu preciso sair.
Dez minutos depois o jantar foi servido. Ao final, depois que os dois rapazes saíram, Rita e Clara foram tomar café na sala. As duas gostavam de conversar depois do jantar.
Falaram sobre o movimento da loja, de outros assuntos. De repente, Clara indagou:
—Você conhece uma moça chamada Marta?
Rita olhou surpreendida para Clara.
—Sim. Por que pergunta?
— Casualmente ouvi os meninos falando sobre ela. Disseram que é muito bonita.
— Bonita e inteligente. É filha do caseiro do sítio. Trabalha aqui na cidade durante a semana e vai para lá às sextas-feiras. Parece que os meninos gostam muito dela. Quando eles vão para o sítio, ela faz tudo para agradá-los.
— Por quê? Que interesse pode ter neles?
Rita fitou-a com seriedade.
— É uma moça gentil, educada. Trata todas as pessoas muito bem. Não demonstra nenhum interesse especial por eles. Se está preocupada com Marcos, esclareço que ele se interessa
muito por uma jovem, e aonde ela vai ele vai atrás. Quanto a Marta, é bem mais velha e pela sua postura não creio que tenha qualquer intenção com ele. Pode ficar tranqüila.
Clara não respondeu. Mas a sensação inquietante reapareceu com mais força.
— Pois eu não gosto que meus filhos andem nesse sítio todos os fins de semana. Não conheço as pessoas, não sei o que eles fazem lá. O que sei é que a cada dia noto que ficam mais interessados em ir. Alguma coisa tem.
— Tem mesmo. É um lugar lindo, as pessoas são alegres, agradáveis. Se você fosse, perceberia logo que é o melhor lugar para eles. Depois, Osvaldo cuida de tudo com muito carinho, é respeitado.
— Preferia que ficassem aqui, perto de mim, como antigamente.
— Você está com ciúme!
Clara irritou-se:
— Ciúme? De onde tirou essa idéia?
— Está, sim. Confesse. Está com ciúme de Osvaldo. Está sendo injusta. Seus filhos gostam dele, mas gostam muito de você. Não precisa ficar enciumada.
Clara não respondeu. Levantou-se, colocou a xícara na bandeja e disse:
— Espero que não venha a me arrepender de deixar que eles freqüentem esse lugar. Agora
vou dormir, estou cansada.
Ela subiu e Rita se demorou um pouco mais pensando naquela conversa.
O que teriam dito os meninos a respeito de Marta que deixou Clara tão irritada? Gostaria de saber.
Na manhã seguinte, depois da saída de Clara para o trabalho e de Marcos para a faculdade, enquanto Carlinhos tomava café na copa, Rita, vendo-se a sós com ele, tocou no assunto:
— Neste domingo não pude ir ao sítio. Era a inauguração do galpão na beira do lago. Como foi?
— Lindo! Você nem imagina quem estava lá: a vovó! Tio Antônio a levou. Papai fez a palestra falando sobre a família, foi emocionante. Todo mundo chorou. Vovó, então, você precisava ver. Nunca pensei que ela fosse tão sensível. Achei que era durona, indiferente, mas me enganei.
— É mesmo? Pena que não fui. Conte tudo com detalhes.
Carlinhos em breves palavras relatou tudo e Rita surpreendida pensava em como Osvaldo estava mudado. Percebeu que Antônio havia melhorado muito. Parecia outro homem.
Osvaldo conseguira transformá-lo. Talvez desejasse fazer o mesmo com Neusa. Mas estaria perdendo tempo: essa nunca mudaria.
Carlinhos dizia:
— Quando nos despedimos, ela me abraçou e disse que eu cantava muito bem. Foi o primeiro elogio que a ouvi fazer.
— É surpreendente. Neusa sempre foi muito crítica. Só vê o lado negativo das coisas.
— Acho que foi o ambiente, que estava alegre, gostoso, todo mundo bem. Não havia nada para criticar.
— E Marta, o que acha dela?
— Muito boa, linda, inteligente, alegre. Gosto dela.
— Eu também. Muito atenciosa.
— Principalmente com papai. Você reparou o jeito como ela olha para ele?
— Você quer dizer que ela...
— Gosta dele. Tenho certeza.
— E ele, corresponde?
— Acho que nem percebeu. Às vezes penso que papai é meio devagar nessas coisas. Não se interessa por mulher nenhuma.
— Só pode ser por dois motivos: ou ainda ama sua mãe ou tem medo de amar e sofrer.
Carlinhos interessou-se:
— Você acha que, apesar de tudo que aconteceu, ele ainda pode gostar de mamãe?
— Ele era louco por ela. Posso estar enganada, mas sua falta de interesse por outras mulheres pode ser por causa disso.
— Seria ótimo se eles voltassem a viver juntos. Mas mamãe não gosta dele.
— Por que diz isso?
— Não sou eu quem diz, é papai. Nas raras vezes que tocou no assunto, disse que foi ela quem deixou de amá-lo.
Rita ficou calada. De fato, Osvaldo, quando se referia a Clara, repetia isso. Seria mesmo?
Depois do rompimento deles, Clara despediu Válter e nunca mais se interessou por ninguém.
Era bonita, os homens sentiam-se atraídos por ela, mas eram sistematicamente recusados.
Carlinhos saiu e Rita continuou pensando. Clara casara-se por amor. Ela mesma havia presenciado como eles se amavam. Quanto ao interesse que sentira por Válter, havia sido
uma ilusão que teria terminado logo e sem conseqüências se Osvaldo não os houvesse surpreendido.
Muito jovem, um pouco imatura, Clara entrou na aventura da qual saiu arrependida e culpada. Várias vezes dissera-lhe que se pudesse voltar atrás nunca teria se deixado envolver.
Clara não era uma mulher volúvel, fácil. Ao contrário: era sincera, fiel, honesta em todas as suas atitudes. Osvaldo estava enganado. Se ela o tivesse traído por amor a outro, teria ficado com Válter quando se separou. Se ela se arrependeu, se descobriu que não amava
Válter, foi porque continuava amando o marido. Não era falta de amor que a impedia de procurá-lo, mas medo, culpa.
A esse pensamento, Rita levantou-se. Precisava fazer alguma coisa para saber a verdade.
Tinha certeza de que Osvaldo continuava amando Clara. O que precisava saber era se Clara também sentia amor por ele.
O sonho de Carlinhos não era tão difícil assim. Se os dois ainda se amavam, havia possibilidade de uma reconciliação. Rita decidiu fazer tudo para descobrir.
No domingo anterior, quando Osvaldo terminou de atender às pessoas, foi servido um lanche e depois todos se despediram.
Osvaldo abraçou a mãe, dizendo:
— Estou feliz que tenha vindo, espero que volte sempre.
— Foi tudo muito bom. Eu voltarei.
Neusa entrou no carro de Antônio calada. Durante o trajeto de volta, Antônio, vendo que ela estava quieta, o que não era seu costume, perguntou:
— O que foi, você não gostou de ter vindo?
— Gostei muito.
— Pois não parece. Está tão calada, com uma cara triste...
— Estou pensando, lembrando algumas coisas. Isso me deixa triste. Mas não tem nada a ver com nosso passeio. Todos me trataram muito bem.
— Eu vi. Lá só tem gente boa, mãe. Osvaldo falou do passado, mas o que ele disse não foi para entristecê-la.
— Eu sei, meu filho. Eu é que estou pensando. Osvaldo está diferente, mudou muito. As pessoas gostam dele.
— Isso mesmo. Ele ficou contente por você ter ido.
Neusa não respondeu. Sentiu um nó na garganta e não quis que Antônio notasse sua comoção. Ele percebeu e mergulhou nos próprios pensamentos.
Uma vez em casa, Neusa foi para o quarto e deitou-se. Por sua mente desfilaram todos os acontecimentos do dia. Quando Osvaldo começou a palestra falando a respeito dela, a princípio temeu que ele estivesse apenas sendo amável por causa das pessoas presentes, mas depois, diante do tom de sinceridade, falando sobre os próprios sentimentos, ela entendeu que ele estava sendo sincero.
Ele era tão pequeno quando se separaram. Nunca imaginou que essa separação o houvesse magoado. Percebeu que essa mágoa foi causadora da indiferença dele.
De repente compreendeu: o que Osvaldo sentia não era indiferença, mas amor que julgava não correspondido. Ele nunca soube quanto ela havia chorado sua ausência.
As lágrimas brotaram em profusão, lavando suas faces. Neusa deixou-as cair. Sentiu o quanto amava os filhos. Arrependeu-se de ter pensado que o conforto era mais importante
que o amor.
Como ela pôde fazer isso? Sentiu-se arrependida, culpada, triste. Lembrou-se de que Osvaldo dissera o quanto valorizava sua amizade. Mas ela não merecia os elogios que ele lhe dispensara.
Chorou durante muito tempo até que, por fim, exausta, adormeceu. No dia seguinte levantou-se apressada. Olhou para o relógio e vestiu-se rápida. Estava atrasada para fazer o café.
Correu para a cozinha e encontrou a mesa posta, a térmica sobre a mesa, pão fresco no cestinho. Antônio já havia saído, mas antes havia comprado pão, feito o café, arrumado tudo.
Sentiu-se culpada por ter perdido a hora, mas ao mesmo tempo sentiu alívio. Não estava com vontade de conversar.
Tomou café e lembrou-se do lanche servido no sítio. A mesa estava tão bonita, com uma toalha xadrez amarela, um arranjo de flores no centro, os pratos arrumados com capricho.
Lá era tudo tão alegre, tão bonito. Havia flores por toda parte. Estavam na primavera.
Olhou em volta: em sua casa não havia nenhuma flor. O velho vaso meio desbeiçado estava vazio. Dentro apenas alguns pequenos objetos que ela ia colocando ao acaso.
Apanhou o vaso e debruçou-o sobre a pia da cozinha. De dentro caíram alguns parafusos um pedaço de barbante enrolado, um lápis preto com a ponta gasta, uma chave de fenda pequena, uma nota de compras dobrada e amarelecida.
Ela apanhou a chave de fenda, dizendo:
— Puxa, eu procurei tanto por você! Não sabia que estava aí.
Tirou a mesa e começou a lavar a louça. Observou que o pratinho de sobremesa estava lascado. No sítio tudo parecia novo, mesmo o velho bule que conhecia desde o tempo de Ester.
Deu de ombros. Ester tinha empregados; ela, não. Precisava fazer tudo sozinha. Esse pensamento não a confortou. Reconheceu que sua louça estava muito feia. Talvez fosse bom colocar em uso aquele jogo que ganhara no casamento e nunca havia usado.
Orgulhava-se de dizer que ele estava na caixa, novo como no primeiro dia.
Foi ao quartinho dos fundos, apanhou a caixa, colocou-a sobre a mesa da cozinha, abriu-a.
Foi tirando as peças uma a uma. Era um jogo de chá de porcelana, muito bonito. Estava empoeirado. Neusa lavou tudo cuidadosamente. Pegou a caixa para guardá-lo novamente porém notou que ela estava suja, o papelão rasgado de um lado. O aparelho estava limpo,
lindo. Não seria justo guardá-lo naquela caixa velha, quase se desfazendo.
Foi para a sala de jantar e olhou a cristaleira onde havia também algumas lembranças, como os copos que Ester lhe dera quando comprou a casa. Teve de reconhecer que a garrafa de
licor, os cálices de cristal foram presente de Ester, que nunca esquecia seu aniversário.
Decidiu lavar tudo e arrumar de forma que o aparelho de chá coubesse. Ali ficaria melhor do que na caixa, e ela poderia vê-lo sempre. Quando acabou, olhou satisfeita para cristaleira. Tudo estava brilhando e a louça havia ficado muito bonita.
Afastaram-se alguns passos para avaliar o efeito e sorriu com satisfação. Ela também tinha coisas bonitas em casa.
A campainha tocou e ela foi abrir. Dorotéia entrou dizendo:
— Então, como foi ontem?
Neusa no sábado havia confidenciado que não tinha vontade de ir ao sítio. Iria apenas para satisfazer Antônio e não passar o domingo sozinha.
— Ontem como?
— Lá no sítio. Aborreceu-se muito? Vi quando chegaram. Quase vim aqui saber as novidades. Mas Antônio anda tão antipático comigo... Aliás, não sei o que deu nele ultimamente. Está com o rei na barriga. Só porque arranjou um emprego bom, não dá confiança aos pobres, como eu.
Neusa olhou para Dorotéia como se a estivesse vendo pela primeira vez. Fechou a cara e respondeu:
— Antônio é muito bom. Não gosto que fale dele desse jeito.
— Puxa, não pensei que fosse se ofender. Não disse por mal. Você sabe que, apesar de tudo, gosto dele como de um filho.
Dorotéia olhou em volta e parou em frente à cristaleira:
— Puxa, você também está melhorando de vida. Ainda bem, não é? Foi Osvaldo quem lhe deu essa louça linda?
Neusa irritou-se com o tom dela. Respondeu com frieza:
— Não. Eu tenho esse aparelho desde o meu casamento.
— Nossa. Por que nunca me mostrou?
— Estava guardado em uma caixa. Ficou bonito aí, não?
— É, ficou. Mas você ainda não me falou de ontem. Foi muito ruim?
—Ao contrário. Foi ótimo. Até me arrependo de não ter ido antes. Estou pensando em voltar lá no próximo domingo.
Neusa notou que Dorotéia não gostara da resposta, dissimulando. Conhecia o trejeito de sua boca quando disfarçava.
Dorotéia ironizou:
— Estou vendo que eles conseguiram.
— Conseguiram o quê?
— Impressionar você, como fizeram com Antônio. Logo estará fazendo tudo que eles querem. Não percebe que eles estão envolvendo vocês com essa história de espíritos? Você sabe que isso é coisa do demônio. Aliás, é ele quem está lhes trazendo dinheiro. Você está se deixando levar.
Neusa encarou-a irritada:
— Não gosto que fale assim de meus filhos. Eles são muito bons. Principalmente Osvaldo.
Ele é muito querido e respeitado por todos.
— Está vendo? Até ontem dizia que seu filho era ruim, não ligava para a família, ficou rico e nunca ajudou vocês.
Agora ficou bom de uma hora para outra? Não vê que está sendo usada?
— Não. Você está sendo maldosa. Todos que estavam no sítio são pessoas de bem que só pensam no bem. Você pensa que sou burra e incapaz de saber o que é bom ou ruim para mim?
Dorotéia adoçou a voz:
—Eu não quis dizer isso. É que o tinhoso fascina. Tem mil e uma maneiras de enganar.
Estou vendo que você já caiu na lábia dele.
— Sabe de uma coisa? Não estou com vontade de conversar. Você vê maldade em tudo.
Nunca a ouvi dizer uma coisa boa.
— Sou sua amiga, quero esclarecer, desejo o seu bem.
— Não parece. Só pensa no mal.
— Ao contrário. Estou prevenindo você contra o mal.
Está se metendo na minha vida e não estou gostando disso.
— Já vi que não dá para fazer mais nada. Se é assim, lavo minhas mãos. Depois, quando cair em si, vai me dar razão, mas pode ser tarde.
—Olhe aqui, Dorotéia, não gosto que aponte o dedo para mim.Estou sem vontade de conversar. Quero ficar quieta no meu canto. Por isso, é melhor ir embora.
— Está me expulsando de sua casa? — gritou ela, colérica.
— Estou pedindo que vá embora porque quero ficar sozinha. Não estou querendo brigar.
— Bastou uma vez nesse sítio infeliz para você acabar com uma amizade de tantos anos — disse ela com voz chorosa. — Mas não faz mal. Meu Deus me ensinou a perdoar, por isso vou embora. Mas estou sentida. Só voltarei aqui se for me pedir.
Ela deu as costas, saiu de cabeça erguida e passos firmes. Neusa passou a mão pela testa como querendo afastar os pensamentos desagradáveis.
Melhor mesmo que Dorotéia não voltasse mais. Era uma maldosa. Só sabia falar mal dos outros. Estava com inveja porque eles estavam melhorando de vida.
Sua amizade não lhe faria falta. Tinha novos amigos que a respeitavam e a tratavam com carinho.
Domingo iria de novo ao sítio. Foi para o quarto, abriu o guarda-roupa. Examinou um a um os vestidos pendurados. Eram escuros, impróprios para um dia de primavera.
Lembrou-se de um corte de tecido que Antônio lhe dera havia alguns anos e que ela não costurara por achá-lo de cor muito viva.
Abriu a gaveta, apanhou o tecido, estendeu-o sobre a cama. Era de fundo azul- claro e tinha estampadas algumas florzinhas miúdas amarelo-claras.
Colocou-o sobre o corpo e foi até o espelho. Achou-o alegre. Servia bem para um dia de verão. Resolveu fazer um vestido para usar no domingo.
Apanhou os velhos figurinos e começou a folheá-los à procura de um modelo. Neusa não percebeu, mas do seu lado estava um moço que sorriu satisfeito vendo-a entretida na escolha.
Com carinho, passou a mão acariciando sua cabeça dizendo ao seu ouvido:
— Finalmente, minha querida, você está começando a acordar. Havia muito tempo que estava esperando que você reagisse. Eu nunca a esqueci. Agora tenho esperanças de que
possamos ficar juntos de novo quando você regressar.
Beijou-a levemente na testa. Neusa estremeceu e lembrou-se de João, seu marido. Ele gostava de tecidos daquela cor. Como seria bom se ele estivesse ali e pudesse vê-la!
João abraçou-a, dizendo ao seu ouvido:
— Eu estou aqui e voltarei para vê-la com esse vestido. Vai ficar linda!
Neusa sorriu. João gostava de cores vivas, alegres. Se ele estivesse vivo, sua vida não teria sido tão triste.
— Vou me vestir assim em memória dele. Se os espíritos podem nos observar, como Osvaldo disse, ele vai poder me ver com este vestido.
Com disposição ela continuou procurando o modelo, escolheu um de duas peças que tinha o molde exatamente no seu número.
Quando Antônio voltou à noite, ao invés de Neusa estar, como sempre, em frente à televisão, estava no quarto dos fundos onde passava roupas e tinha a máquina de costura, trabalhando. Admirado, ele a encontrou em meio a moldes, alfinetes, tesoura e retalhos de pano.
— O que está fazendo?
— Um vestido. Foi você quem me deu este tecido, há muito tempo, lembra?
— Lembro. Pensei que não tivesse gostado, afinal nunca fez nada com ele.
— É. Agora resolvi. Lembrei que seu pai gostava desta cor. Vou parar para esquentar o seu jantar.
—Não precisa. Comi um lanche fora. Já passa das nove.
— Já? Nem percebi. Esqueci até a novela. Também, não estava boa mesmo.
Vou comer alguma coisa. Estou com fome. Amanhã continuo.
Antônio olhou pensativo para a mãe. Teria visto bem! Ela, além de não fazer nenhuma queixa, estava costurando, coisa que dizia detestar. Reclamava toda vez que tinha de consertar uma roupa ou pregar um botão em suas camisas.
Entrou na sala e logo notou que a cristaleira estava diferente.
Havia alguma coisa nova ou era só impressão?
Neusa apareceu na porta e disse:
— É lindo esse aparelho de chá, não acha?
— Acho. Você comprou?
Não. É velho. Foi presente de casamento.
— Onde estava, que eu nunca vi?
— Na caixa. Mas ela estava velha. Depois, achei que ele fica muito bonito aí.
— Ficou lindo. A sala até parece outra com essas coisas brilhando na cristaleira.
Neusa sorriu contente. Ela também sabia fazer as coisas e cuidar de sua casa.
Antônio foi para o quarto pensativo. Era cedo para avaliar, mas Neusa estava diferente: mais disposta, mais viva, até seus olhos brilhavam mais. Como seria bom se ela fosse mais feliz! Não gostava de vê-la insatisfeita, inquieta, reclamando pelos cantos da casa.
Insistiu para levá-la ao sítio porque queria que ela usufruísse todo o bem que ele mesmo sentia lá. No íntimo, temia que ela não se sensibilizasse. Mas estava enganado. Agora podia ter esperanças de que ela mudasse sua maneira de olhar a vida.
As palavras de Osvaldo ainda estavam vivas em sua memória. Neusa era uma mulher corajosa, dedicada, honesta. Apesar dos problemas que havia enfrentado na mocidade,
gozava de boa saúde e podia contar com Antônio, que sempre estivera do seu lado. Agora que ele havia encontrado um caminho melhor, que se sentia alegre, motivado ao trabalho, ganhando dinheiro, desfrutando de mais conforto, reconhecia que não tinham nada a
reclamar da vida mas sim a agradecer.
Estava disposto a ser feliz. Não queria mais ficar ao lado da mãe sempre descontente, infeliz. Por isso desejara se mudar. Não pretendia abandoná-la, mas sim viver em um lugar
mais bonito, que pudesse arrumar com capricho, manter em ordem.
Alberto dissera que os espíritos iluminados vivem em lugares bonitos, que a beleza alimenta a alma.
A ordem, a higiene criam a harmonia, atraem energias positivas. Para isso não havia necessidade de ser rico mas de ter capricho e bom gosto.
Antônio ficava imaginando como seria esse lugar. Sentia vontade de usufruir todas essas coisas.
Deitou-se pensando em como seria bom se Neusa também descobrisse essa realidade e ele não precisasse sair de casa, se juntos pudessem transformar aquela velha casa em um lugar
alegre e feliz.

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