Capítulo 23

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Clara entrou em casa e admirou-se ao encontrar Marcos e Carlos esperando-a na sala.
— Os dois em casa tão cedo? Aconteceu alguma coisa?
— Estávamos esperando você — disse Carlos.
Papai vai mandar o carro nos buscar. Vamos para o sítio passar o fim de semana. Não queríamos ir sem nos despedirmos de você.
— Parece que agora virou moda. Todos os fins de semana vocês vão para o sítio e nos deixam sozinhas. Não acham que estão exagerando? Eu também gosto de ficar com vocês.
Faz tempo que não passamos uma tarde juntos, conversando.
— Eu sei, mãe. Mas é que vai haver um evento importante no sítio. Não queremos perder
— disse Marcos. — Carlos vai tocar. Ensaiou a semana toda.
— Não sei o que há lá que vocês tanto gostam.
— Garanto que se você fosse adoraria — tornou Carlos.
Clara fez de conta que não ouviu. Disse apenas:
— Nesse caso, não digo mais nada. Podem ir.
Os dois a abraçaram com carinho. Subiram para o quarto e desceram logo com a bagagem.
— Pelo menos, jantem comigo.
Os dois hesitaram, e Marcos respondeu:
— É que papai mandou preparar um jantar especial para nós. O carro já deve estar chegando.
Eles a beijaram e se foram. Clara entrou na copa dizendo:
— Você viu, Rita? Eles nem ligam mais para mim. Agora tudo é o pai. Não sei como isso vai acabar. Qualquer dia destes vão querer nos deixar e morar com ele. Isso não vou suportar. Depois de tudo, Osvaldo aparece e quer tomar os filhos de mim.
Rita, que supervisionava Diva, que fazia o jantar, disse séria:
— Não exagere, Clara. Eles adoram o pai, mas não é só isso. Eles gostam das palestras que Osvaldo faz, dos jovens que circulam por lá aos domingos. Eles fizeram amizades, cantam, alegram-se juntos.
— Osvaldo faz isso só para tirá-los de mim.
— Não seja injusta, Clara. Na verdade, Osvaldo conseguiu criar naquele Sítio um ambiente leve, agradável, onde as pessoas se voltam para a espiritualidade, sentem-se bem, melhoram suas vidas. O lugar é alegre, bonito.
— Chega, Rita. Daqui a pouco você também vai passar para o lado dele.
— Gostaria que você também fizesse isso. Garanto que se sentiria muito feliz.
— Você sabe que isso é impossível.
— Não sei por quê. Conheço muitos casais que se separaram mas convivem pacificamente, até como amigos.
— Eu também conheço, mas nosso caso é diferente. Osvaldo nunca vai esquecer o que eu lhe fiz. Depois, eu também não quero vê-lo.
— Você é quem sabe. Mas não pode impedir que seus filhos gostem de ficar com ele.
Clara não respondeu. Subitamente sentiu-se cansada. Não queria pensar em nada. O passado estava morto, e ela não queria ressuscitá-lo.
Antônio chegou em casa e encontrou Neusa mal-humorada.
— Até que enfim chegou. Estava falando sozinha.
— Porque quer. Saia, vá visitar alguma amiga, ligue o rádio, a televisão. Procure distrair-se.
— Não sinto vontade de nada.
Antônio olhou pensativo para ela. Osvaldo estava certo: Neusa não sentia prazer em nada.
Havia comprado um televisor em cores para ela. Mas, apesar de assistir um pouco, ela não demonstrava alegria.
Depois do jantar, tomaram café na sala. Ao final, ele se levantou, dizendo:
— Vou subir Tenho de arrumar a mala. Amanhã bem cedo vou para o sítio.
— Outra vez Pensei que fosse ficar em casa este fim de semana.
— Não posso. Faz parte do meu trabalho. Depois, neste domingo teremos um evento lá.
Osvaldo conta comigo.
— Ele está é se aproveitando de você. Ninguém é obrigado a trabalhar nos fins de semana.
— Gosto tanto de ir para lá que nem é trabalho, é prazer. Por que não vai comigo?
— Eu? Não gosto de dormir fora de casa.
— Quando fomos lá, você bem que queria ficar.
— E Osvaldo não deixou. Não esqueço essa grosseria. Por isso não vou de oferecida.
— Ele fez isso porque não tinha como nos hospedar. Mas agora ele aumentou a casa e podemos ir. Assim não ficará aqui sozinha. Poderá distrair-se.
Ela hesitava entre curiosidade e a vontade de se fazer de difícil.
— Estou convidando Faça como quiser. Não vou insistir. Tem todo direito de escolher.
Vendo que ele ia saindo, ela decidiu:
— Está bem. Eu vou. Mas é só para não passar o fim de semana aqui, olhando para as paredes.
Ele sorriu levemente e respondeu:
— Sairemos às seis. Quero chegar lá antes de Osvaldo e do resto do pessoal.
No dia seguinte, quando Antônio se levantou, ouviu barulho na cozinha e sentiu o cheiro do café fresco. Arrumou-se e quando desceu viu a mala da mãe pronta na sala.
Quando Osvaldo chegou ao sítio com José, Rosa e os dois filhos, Antônio e Neusa já estavam lá. Enquanto ele abraçava a mãe, dando-lhe as boas-vindas, Marcos e Carlinhos se
entreolharam aborrecidos.
A presença da avó, com quem haviam tido momentos desagradáveis, foi um balde de água fria em seu entusiasmo.
Osvaldo disse com simplicidade:
— Vocês não vão cumprimentar sua avó?
Acanhados, cada um por sua vez estendeu a mão, arriscando um tímido “Como vai, vó?”
Neusa olhou para os dois. Fazia muito tempo que não os via. Exclamou admirada:
— Estão moços! Bonitos! Puxa, Marcos se parece muito com meu falecido João, seu avô.
Já Carlos é mais parecido com a mãe. Eu vou muito bem. Mas, se eu não viesse aqui, vocês nunca se lembrariam que têm uma avó. Eu sei que não se importam comigo. Afinal, nunca
pudemos conviver.
Nenhum dos dois respondeu, e ela continuou:
— Mas não os culpo por terem me esquecido. Com certeza fizeram muito bem a cabeça de vocês contra mim.
—Está enganada, vó. Ninguém nunca fez nossa cabeça — disse Carlos com certa irritação.
Você é que nunca gostou de nós.
Osvaldo interveio:
—Talvez vocês não se conheçam o suficiente para apreciar as qualidades uns dos outros.
Esta é uma excelente oportunidade de se conhecerem melhor e notar o que cada um tem de bom. Garanto que vão se surpreender.
— É injusto você dizer que não gosto de vocês. Ao contrário. Sempre me preocupei com o futuro, principalmente depois que Osvaldo foi embora. Muitas vezes falei com sua mãe.
Queria que fossem morar comigo. Estava disposta a ficar com vocês. Mas ela nunca quis.
Apesar disso, tenho rezado sempre para que Deus os proteja.
Neusa tinha lágrimas nos olhos, e os dois rapazes não sabiam o que responder. Foi Osvaldo quem tomou a palavra:
— O amor é um sentimento singular. Cada pessoa sente e se manifesta do seu jeito. Isso gera muita incompreensão. Como não podemos entrar dentro do coração dos outros para
saber qual é o sentimento que cultivam, o mais certo é nunca julgar. Por outro lado, sempre será útil analisar e procurar compreender o que vai dentro do nosso coração. Isso eu garanto
que dará um resultado muito melhor.
José apareceu para avisar que a mesa estava pronta para um lanche, e os dois rapazes respiraram aliviados. Quando se viram a sós, Carlinhos não se conteve:
—Você viu só? Na frente do papai ela parecia um cordeirinho.
Não acredito em nada do que ela disse.
— De fato. Vovó sempre foi irritante, maltratou mamãe. Agora ela vem com essa conversa de que gosta de nós. Também não creio. Mas viemos aqui para um encontro de paz, e não é
bom lembrar das nossas mágoas. Depois, papai tem razão.
— Por quê? Eu não acho.
— Se ela nos tratou mal, nós fizemos o mesmo. Nunca a procuramos nem tivemos um gesto de carinho com ela.
— O que ela queria, depois do que fez? Deve dar graças a Deu por a tratarmos com educação. Só fiz isso em respeito ao papai. A última vez que nos vimos, ela foi à escola falar mal da mãe para você Rita apareceu bem na hora.
— Seja como for, temos de ser educados com ela.
— Isso se ela não provocar. Viu o que ela falou de mamãe? Se der mais alguma indireta, não vou tolerar. Papai que me desculpe.
— Calma, Carlos. Não devemos nos importar com o que os outros dizem, mas sim cuidar para não cairmos no mesmo erro deles. O pai sempre fala isso, lembra?
— Lembro. Mas não é fácil.
Marcos riu e respondeu:
— Não é porque estamos viciados em revidar tudo. Estamos ainda na lei do “olho por olho, dente por dente”. Isso é um atraso para nossa vida.
Carlos suspirou:
— Está bem. Sei o que quer dizer. Vou me esforçar.
Depois do lauto café que tomaram, apressaram-se a ir até o galpão que Osvaldo construíra ao lado do lago que estavam inaugurando naquele dia. Ele costumava fazer as palestras na
beira do lago, ao ar livre. No começo, eram poucas as pessoas presentes. Com o tempo, o número foi aumentando.
Por isso Osvaldo decidiu construir aquele galpão rústico mas que os protegeria das intempéries. Estava lotado. Apenas na primeira fila de cadeiras alguns lugares estavam
reservados. Antônio levou a mãe e os dois sobrinhos para se acomodarem nesses assentos.
O dia estava lindo e o sol brilhava refletindo-se nas águas do rio. Os pássaros cantavam e havia flores por toda parte.
Um jovem cuidava do aparelho de som e a música era suave. Osvaldo apanhou o microfone e colocou-se em pé à frente do público.
Depois de saudá-los dando as boas-vindas, disse:
— Hoje é um dia feliz para mim, porque, além de receber vocês em nosso novo salão, conto com a visita de uma pessoa muito importante para mim. Finalmente ela decidiu nos honrar com sua presença tão esperada. É com alegria que desejo apresentar-lhes minha
mãe, Dona Neusa.
Uma salva de palmas entusiasmadas ecoou enquanto Neusa, tomada de surpresa, tremia qual folha batida pelo vento forte. Osvaldo foi até ela, pegou seu braço para que se levantasse e ficasse de frente para a platéia.
Olhando para aqueles rostos alegres que batiam palmas sorrindo amistosamente, Neusa não conteve a emoção e começou a soluçar. Abraçou o filho, que a apertou em seus braços com carinho. Quanto mais ela chorava, mais eles a aplaudiam.
Quando ela conseguiu se acalmar, ele a fez sentar novamente e continuou:
— Minha mãe é uma mulher simples, que se mostrou corajosa, fiel. Ficou viúva depois de seis anos de casamento, tendo dois filhos pequenos para criar: eu e Antônio, que vocês
conhecem.
Naquele tempo era difícil para uma mulher conseguir trabalho, principalmente para ela, que
vinha de uma família pobre, sem recursos para estudar. Por isso, fez o sacrifício de separar-se de mim, seu filho mais velho, pedindo à minha tia Ester, irmã de meu pai, que cuidasse
de mim, enquanto ela cuidaria do sustento do menor, ainda de colo.
O povo ouvia com interesse, e Osvaldo continuou:
—Eu estava com cinco anos e senti muito a mudança. Fui para um lugar estranho, com costumes muito diferentes da casa de minha mãe. Meus tios, ricos e instruídos, sempre me trataram bem, mas eu me sentia retraído, deslocado. José, que hoje trabalha comigo, vocês
conhecem, foi quem me ensinou os rudimentos da vida social. Eu tentei não desagradar aos tios que me acolheram, que me deram tudo. Estudei nos melhores colégios, tornei-me um
jovem educado, que sabia conviver em qualquer ambiente social. Consegui trabalho, fiz uma carreira bem-sucedida.
— Apesar disso, eu continuava retraído. Naquele tempo, não soube avaliar o que fizeram por mim. Sempre me julguei inferior a eles, sempre me senti como uma pessoa criada de
favor. Observando a diferença social entre meus pais e eles, fiquei magoado com minha mãe por ela ter me dado a eles. Nunca tive coragem de lhe dizer que naquele tempo talvez eu tivesse preferido passar pelas agruras da pobreza ao lado dos meus a viver como eu vivia.
— Incapaz de analisar meus sentimentos, distanciei-me muito da minha mãe e do meu irmão. Acreditei que eles não me amassem e que estavam contentes por verem-se livres de mim.
— Foi preciso que uma tempestade terrível varresse minha indiferença, foi preciso que eu mergulhasse no inferno da desilusão, da dor e do desespero, que eu perdesse a fé nas pessoas, em Deus, em tudo, descesse ao fundo do poço, para entender que eu sempre estivera errado.
— Foi a ajuda de pessoas simples, sinceras, cheias de amor e fé na espiritualidade que me
trouxe de volta à vida. A bondade divina me abriu a sensibilidade, e eu pude vislumbrar a luz de outros mundos, de outros seres que já viveram aqui e hoje estão ao nosso lado, prontos para nos ajudar.
— Então, iluminado pela luz espiritual, pude analisar minha vida e enxergar a verdade. Foi por amor que minha mãe me entregou para meus tios. Ela pensou em meu futuro. Ela também deve ter chorado de saudade sentindo minha falta, mas preferiu sacrificar-se para
que eu pudesse desfrutar de mais conforto e de um futuro melhor.
— Mas eu, julgando-me abandonado, sentindo-me inferior, dei vazão ao meu egoísmo e, qual criança mimada, não cumpri a parte de filho. Não valorizei quem me deu o bem maior,
que é a vida. Fiz mais. Não aceitei o carinho dos meus tios. Só depois, quando me vi perdido, foi que finalmente conheci melhor minha tia Ester. Mulher admirável, justa, bondosa. Felizmente, tive tempo de aprender com ela muitas coisas. Tenho certeza de que,
de onde ela está, continua me abençoando.
— Graças a ela, de quem herdei todos os bens, posso hoje me dedicar inteiramente ao que
gosto de fazer.
Osvaldo fez ligeira pausa e, olhando nos olhos das pessoas presentes, prosseguiu:
— Hoje ao chegar aqui, senti muita alegria por encontrar minha mãe, porque sei que é a oportunidade que a vida está me oferecendo para que eu demonstre a gratidão que sinto por
ela ter me dado a vida. Não importam os caminhos que cada um de nós escolheu para enfrentar seus medos e poder sobreviver. Não estou em condições de julgar ninguém. Se me distanciei dela e ela se retraiu, não vem ao caso. O importante é que tomei consciência
de que a vida nos colocou lado a lado para que aprendêssemos um com o outro, e, embora eu tenha demorado a entender isso, ainda temos tempo de conviver e aproveitar essa
oportunidade.
— Sei que não há duas pessoas iguais, e isso pode atrapalhar o bom relacionamento. Contudo, se houver respeito, se aceitarmos as diferenças uns dos outros, a convivência se
tomará boa e prazerosa.
— Estou expondo minhas experiências para que vocês observem, meditem na verdadeira causa dos desentendimentos que nos perturbam. A falta de diálogo, a presunção de saber o
que os outros pensam, de ver segundas intenções onde pode ser apenas dificuldade de se expressar, são as causas mais prováveis de nossos problemas. Por isso, há que ponderar, ter bom senso. Conversar. Colocar-se com sinceridade, dizer o que sente sem medo, procurar o que está atrás das palavras.
— Nem sempre o que parece é. Um ato agressivo pode ser uma maneira indireta de chamar a atenção e de pedir ajuda. Uma postura indiferente pode ser uma máscara para esconder a
própria sensibilidade a fim de evitar o sofrimento. Uma observação maldosa sobre o comportamento de alguém esconde a falta de confiança em si, a carência de afeto e o desejo
inconsciente de fazer amigos.
— Nós que desejamos conhecer a verdade, que confiamos na vida, não podemos mais nos prender a essas ilusões. Durante anos, pressionados pelas regras sociais, fomos colocando
diversas máscaras conforme as conveniências.
E chegamos à conclusão de que elas apenas nos levaram à infelicidade.
— Chega de querer parecer isto ou aquilo. Somos como somos. Negar nossas qualidades será atirar fora todas as nossas conquistas. Trazê-las à tona, mantendo-as ativas, é colocar
nossa força a serviço do nosso progresso. Quanto aos pontos fracos, é preciso conhecê-los e ter paciência diante dos próprios limites. A aprendizagem é objetivo da vida, porém ela é
gradativa e cada um a realiza em seu próprio ritmo. Nesses casos, a impaciência e a intolerância criam maiores obstáculos ao amadurecimento.
— Por isso, vocês, que estão aqui dispostos a criar uma vida melhor, devem saber que o primeiro passo é conhecer o processo, saber como a vida trabalha. É ela que une na mesma
família pessoas que podem ajudar-se mutuamente. É ela também que as separa por períodos conforme o aproveitamento e as necessidades de cada um.
— Todavia é preciso estar atento, porque a escolha, a aprendizagem é para todos os envolvidos. A vida não exige que alguém suporte a maldade alheia indiscriminadamente,
mas sim que cada um faça sua parte. Depois de certo tempo, afasta as pessoas resistentes.
Elas precisam de mais tempo para aprender.
— Mas você que anseia por seguir um caminho melhor, mais condizente com as aspirações de sua alma, não se prenda nem se martirize tentando insistir para que os outros entendam seus argumentos e o acompanhem. Será inútil. Entregue os retardatários nas mãos de Deus e siga seu próprio caminho.
— É preciso respeitar os próprios limites. Aceitar o que não pode mudar é reconhecer a força maior que rege nossas vidas. Esforçar-se para fazer o seu melhor aproveitando todas as oportunidades é fazer a parte que lhe cabe na criação do próprio destino.
— A bondade de Deus é infinita e o universo é perfeito. A felicidade é o nosso objetivo, seja onde for. Minhas palavras indicam o caminho mais curto para a conquista do nosso
progresso. Quem as entender e experimentar certamente se livrará de muitos sofrimentos e descobrirá que tudo ficou mais fácil. Faço votos de que consigam.
Osvaldo calou-se por alguns instantes, depois fez uma prece de agradecimento e encerrou a reunião.
As pessoas foram se levantando e saindo. Marcos e Carlos abraçaram o pai. Antônio e Neusa continuaram sentados. Cabeça baixa, Neusa, sempre tão comunicativa, não sentia vontade de falar.
As palavras de Osvaldo mexeram com seus sentimentos. Fizeram-na recordar-se de todos os sofrimentos quando perdeu o marido e viu-se sem dinheiro, com duas crianças pequenas.
Lembrou-se dos primeiros dias de viuvez, quando o dinheiro foi acabando e ela não sabia o que seria deles no futuro.
Viu-se na sala de sua pequena casa conversando com Ester, que concordou em criar Osvaldo. Dos primeiros dias em que ela olhava a caminha dele vazia e se culpava por haver se separado dele. Suas brincadeiras, seu riso alegre, suas palavras engraçadas... Sua casa
tornou-se muito vazia depois que ele se foi. Os brinquedos simples que ele possuía e que Ester não quis levar ficaram, e Neusa pegou-se algumas vezes segurando-os enquanto as
lágrimas desciam pelo seu rosto. Conformara-se ao saber que ele vivia com conforto, vestia-se bem, tinha tudo. Ela procurou sustentar a casa como deu. Lavou roupa para fora,
costurou, fez doces. Trabalhava muito para se ocupar e poder ganhar o sustento. A pensão do marido era insuficiente, pagava o aluguel e nada mais.
Ester comprou-lhe a pequena casa em que ela morava e assim pôde economizar o dinheiro do aluguel.
Ela sentiu uma mão em seu ombro enquanto uma voz de mulher dizia:
— Dona Neusa, posso dar-lhe um abraço?
Arrancada de seus pensamentos, Neusa levantou os olhos. Uma mulher de meia-idade, rosto corado, sorriso acolhedor, estava parada à sua frente.
— Tenho muito prazer em conhecê-la. Meu nome é Luísa. Posso dar-lhe um abraço?
Neusa levantou-se admirada e sorriu. A outra abraçou-a com força, depois disse
emocionada:
— Deve ser muito bom ter um filho como Osvaldo. A senhora é uma mãe feliz. Eu perdi meu filho há dois anos. Vim aqui desesperada, pensando até em me matar. Mas ele me ajudou, me devolveu a fé, a vontade de viver. Hoje eu sei que a separação é temporária, que meu filho continua vivo em outra dimensão. Deus abençoe a senhora por ter dado vida a ele.
Neusa agradeceu emocionada. Logo viu-se rodeada por algumas pessoas que demonstravam carinho e gratidão.
Antônio pegou em seu braço, dizendo:
— Agora temos de ir. A segunda parte vai começar. Carlinhos vai tocar.
Em meio àquelas pessoas, Neusa seguiu calada. Sentia um calor no peito que a deixava sem vontade de falar. Tinha medo de chorar.
— Veja como o dia está lindo! Aqui o céu fica mais azul e as flores são mais perfumadas. Não acha, Dona Neusa?
Ela olhou para o céu. Viu as flores, ouviu os pássaros como se os estivesse vendo pela primeira vez. Havia quanto tempo não prestava atenção neles?
— Sim. É lindo.
Na varanda do casarão, as pessoas se acomodavam, algumas sentando nas escadas, outras no chão ou nas cadeiras dispostas contra a parede. No meio deles, Carlinhos, sentado, segurando o violão, esperava.
Antônio encaminhou Neusa para uma cadeira de onde podia ver o neto e acomodou-se do lado de fora. As pessoas conversavam alegres. Alguém pediu silêncio e Carlinhos começou
a tocar e cantar uma canção em voga, e as pessoas cantaram junto.
Enquanto isso, Osvaldo foi para uma sala e chamou Marta. Apesar de trabalhar na capital, ela ia para casa dos pais todos os fins de semana. Era uma moça bonita, inteligente, instruída, agradável. Possuía olhos castanhos que, quando estava alegre e sorria, tomavam-se cor de mel. Sua voz era doce e seu sorriso, amistoso.
Osvaldo simpatizou com ela desde o primeiro momento. Marta interessou-se logo pelo projeto e ofereceu-se para ajudá-lo nos fins de semana.
Dentro de pouco tempo, havia se familiarizado com tudo, e sua ajuda tornou-se eficiente. Ia
para o sítio às sextas-feiras no fim da tarde e no sábado pela manhã atendia às pessoas que procuravam Osvaldo para uma consulta.
À tarde, ele as atendia e depois Marta obedecia às determinações que lhe eram indicadas.
No domingo, havia uma reunião à qual compareciam as pessoas que Osvaldo indicava.
Nesses encontros, além da prece e das palestras de Osvaldo, havia um almoço e um evento musical em que todos participavam.
Seguindo orientação espiritual, solicitavam aos participantes que levassem um prato
qualquer como contribuição.
No início, havia poucas pessoas, porém depois de algum tempo o número foi aumentando.
Osvaldo havia organizado essas reuniões como um tratamento psicoespiritual no qual o convidado participaria por um período. Quando estivesse mais equilibrado, teria alta e não
precisaria mais comparecer.
No entanto, o ambiente alegre, gostoso, participativo, a camaradagem acabaram por fazer com que, mesmo não precisando mais de tratamento, as pessoas insistissem em continuar.
Osvaldo pediu orientação de Alberto, que respondeu:
— Pode permitir que continuem. Lembre-se de que a alegria, o companheirismo, o
convívio, a oração em conjunto criam energias radiosas. Nesse ambiente, não me surpreenderia se muitas curas viessem a ocorrer.
— Entendi. Há mais alguma orientação?
— Continue como está. Muitos acreditam que para se ligar com Deus precisam ir às igrejas, obedecer a determinadas regras. A verdade é outra. Para se ligar com a luz basta a alegria
de coração, a sinceridade de propósito, o respeito pelas diferenças dos outros, a disposição de fazer o melhor e de ficar no bem. Esse é o caminho do equilíbrio espiritual, o segredo da
boa saúde e da longevidade. Enquanto mantiver o ambiente aqui como está, tudo estará favorável a que nós os espíritos possamos trabalhar.
Assim, ele atendia às pessoas nos fins de semana e, nos outros dias, trabalhava na organização do laboratório, onde colocara um farmacêutico responsável, que, apesar de ser
funcionário contratado, comungava nos mesmos ideais de espiritualidade.
Aliás, orientado pelos espíritos, Osvaldo só empregava pessoas que compartilhassem dos
mesmos objetivos. Alberto dissera-lhe que, para haver comprometimento, entusiasmo, alegria, realização profissional, era indispensável esse ponto de vista. Alguém que pensasse
de forma diferente estaria deslocado, distanciado, e não faria um bom trabalho.
Depois, os trabalhadores ligados à espiritualidade precisam conhecer as energias que estão à sua volta, tanto no contato com as pessoas como para poder manter o próprio equilíbrio.
Os funcionários de uma organização, mesmo remunerados pelo seu trabalho, não se isentam das energias que seu trabalho atrai. Onde as pessoas se agrupam, mesmo sem
conhecer a espiritualidade, apenas com propósito de manter um negócio, além das energias de cada um que se misturam e os influenciam, circulam outras: espíritos ligados às pessoas
presentes, parentes mortos desejosos de se comunicar ou de proteger seus entes queridos, espíritos perturbadores que implicam com certas atitudes de alguém.
O mundo das energias atua com um realismo impressionante, e ninguém está isento de suas influências. Por isso seria bom que nas empresas se cultivassem a meditação, os valores
verdadeiros do espírito, o hábito da oração.
Osvaldo sabia que, atendendo a pessoas doentes, desequilibradas, aflitas, precisaria mais do que nunca cercar-se de pessoas conhecedoras do processo e fortes na fé.
Marta entrou na sala onde Osvaldo esperava com uma ficha na mão.
— Vamos começar a atender. Quantas pessoas temos?
— Selecionei quinze que são aqueles que realmente precisam ser atendidos.
— Está bem. Pode entrar o primeiro.
Enquanto isso, na varanda as pessoas cantavam alegres, e Carlinhos acompanhava-os ao
violão. Marcos, sentado nos degraus da escada ao lado de uma garota morena muito bonita, sentia-se feliz.
Havia dois meses que ela ia às reuniões com a mãe, que estava em tratamento. Apesar de estar melhor, elas continuavam indo. Eunice era filha única de Estela, que ficara viúva e a
criara com carinho.
Marcos, que a princípio comparecera a essas reuniões para passar o tempo e agradar ao pai, depois que a conheceu passou a aguardar com ansiedade os fins de semana no sítio.
Dezesseis anos, alta, morena, cabelos vastos e ondulados, corpo bem-feito, boca carnuda, olhos amendoados, duas covinhas quando sorria, o que fazia com freqüência, tornavam-na
encantadora.
Conhecia todas as músicas em voga, cantava muito bem. Sua alegria e vivacidade animavam esses encontros, o que fez Carlinhos comentar com o irmão:
— No próximo domingo vou arranjar um babador para você. Quando ela canta, você fica babando.
— Não seja intrometido. Não é nada disso.
Carlos sorria contente. Gostava desses encontros, quando, além de fazer inúmeros amigos, tocava e cantava. A alegria do ambiente deixava-o bem a semana inteira.
Marcos sentia-se atraído por Eunice. Quando ela estava, ele não conseguia desviar a atenção. Seus olhos a seguiam por toda parte. Era tímido e não sabia como se aproximar.
Carlinhos facilitou tudo, por que Eunice logo fez amizade com ele, trocaram letras de música, e Marcos aproximou-se com naturalidade.
Sentado ao lado dela na escada, ele sentia uma gostosa energia. Tinha vontade de segurar sua mão, mas continha-se. Como havia muitos jovens na escada, estavam muito próximos e
muitas vezes seus corpos se tocavam, principalmente quando alguém resolvia subir ou descer os degraus.
Nesse momento ele sentia seu coração bater descompassado. Carlos, que os observava furtivamente, quando seus olhos se encontravam com os do irmão, piscava sugestivamente,
e Marcos fingia não ter visto.
Sentada na cadeira, Neusa, rodeada por algumas senhoras, observava tudo calada. Elas tentavam conversar, mas Neusa não sentia vontade de falar. Educadamente respondia o que
lhe perguntavam, mas só.
Ela se recordava que, quando adolescente, gostava de dançar, ouvir música, reunir-se com jovens de sua idade para trocar confidências. Agora, ali, esse parecia-lhe um outro mundo.
Sentiu saudade. Lembrou-se de que quando se casou havia sido difícil controlar o desejo de dançar, de cantar. Mas esforçou-se para isso.
Uma mulher casada não podia sair por aí como uma adolescente.Quando o marido era vivo, o nascimento dos filhos compensou-a de certa forma. Ela aceitou a parte que lhe cabia na
responsabilidade conjugal. Mas, depois que ficou viúva, tudo piorou.
Uma viúva não podia sorrir, muito menos ser alegre. O que os outros iriam dizer? O casamento também não a atraía mais. Não valia a pena. Representava mais trabalho e a possibilidade de arranjar outros filhos.
As mulheres a seu lado cantavam e batiam palmas acompanhando a música, e ela se surpreendeu. Muitas eram tão velhas quanto ela, pois estavam com os filhos adultos.
A que estava a seu lado tocou em seu braço, dizendo:
— Eu adoro essa música. Sei só um pedaço da letra.
Começou a cantar alto e Neusa olhou em volta e notou que todos faziam o mesmo com naturalidade. Só ela estava calada.
Quando a música acabou, a que estava do seu lado lhe disse:
— Eu tenho um caderno onde copio as letras de que gosto. Estou vendo que você não canta.
— Não sei as letras — desculpou-se Neusa.
— Nesse caso, vou trazê-lo na semana que vem. Você pode levar e copiar tudo. Eu já sei de cor.
Neusa teve vergonha de dizer que não sabia mais cantar. Deixou-se ficar ali, pensativa, em silêncio. Do lado de fora, Antônio observava-a, tentando descobrir o que estava se passando em sua cabeça.

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