Capítulo 22

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Depois que Antônio saiu, Neusa deu largas à inquietação. Seu filho estava diferente mesmo. Não a ouvia como antes. Talvez esse trabalho de Osvaldo com espíritos dos mortos fosse a causa.
Nos últimos tempos via pela televisão pastores dizendo que os espíritos dos mortos não se comunicavam. Era o demônio quem se apossava das pessoas, enganando-as.
Um arrepio de medo percorreu-lhe o corpo. Quando ela consultava cartomantes querendo
saber o futuro, não estaria também sendo enganada pelo demônio?
Foi à cozinha e tomou um copo de água, mas a inquietação não passava. Começou a andar de um lado para o outro nervosa enquanto vários pensamentos ruins a atormentavam.
E se Osvaldo estivesse sob possessão do demônio? Antônio, trabalhando com ele, também estaria sendo envolvido. E se os dois enlouquecessem? Se Osvaldo perdesse todo o dinheiro, o que seria deles no futuro? Quando queria conversar com Antônio, contar-lhe as
novidades, comentar os problemas, como sempre fazia, ele desconversava, não lhe dava atenção, mostrava-se indiferente.
Era provável que já estivesse enfeitiçado pelo malvado.
A certa altura, parou. Era mãe. Tinha de defender os filhos. Precisava fazer alguma coisa, mas o quê?
Sentiu a cabeça atordoada, o estômago enjoado. Colocou água no fogo para fazer café. A campainha tocou e ela foi atender. Era Dorotéia, sua vizinha.
— Neusa, tenho uma novidade para lhe contar.
Os olhos dela brilhavam de prazer, e Neusa convidou-a entrar.
— Vamos à cozinha, que vou passar um café. Estou deprimida, O café é bom para levantar o ânimo.
— Sabe a Dota do 202? Ela deixou o marido. Quando ele voltou do trabalho ontem à tarde, ela já tinha ido.
Por alguns instantes Neusa esqueceu a preocupação.
— Não diga! Um homem tão trabalhador, tão bom. Por que ela teria feito isso?
— Dizem que foi por causa do filho de seu Antero.
— O dono da padaria?
— Esse mesmo. Levou Joãozinho com ela. O pai está louco da vida. Deu parte à polícia.
— Tomara que ele os encontre. Uma mulher como ela merece ser punida. Para você ver como esse mundo é injusto. Mulheres honestas, trabalhadoras, sinceras não têm sorte. Já uma desavergonhada como Dora, os homens se matam por ela. Veja eu, esposa dedicada, honesta, mulher de um homem só. Fiquei viúva depois de seis anos de casamento.
— Você era moça. Por que nunca mais se casou?
—Nem com meu marido morto eu o traí. E, quanto a esse caso de Dora, pode apostar: Onofre vai esbravejar, dar parte na polícia, mas daqui a algum tempo vai acabar perdoando e voltando com ela.
— Será? Depois do escândalo, ele não terá coragem. A rua inteira sabe e comenta.
A água estava fervendo, e Neusa, que já havia preparado o pó no coador, passou o café.
Colocou o prato com bolo no meio da mesa, serviu o café para ambas e sentou-se para comer.
— Mas você disse que estava preocupada comentou Dorotéia.
— Aconteceu alguma coisa?
Neusa ficou silenciosa por alguns instantes. Sabia que Dorotéia havia deixado a igreja católica na qual fora educada pela família e estava frequentando uma dessas igrejas que
apareciam na televisão.
— Pelo seu silêncio, vejo que está mesmo acontecendo alguma coisa.
—Você é minha amiga. Não posso negar. Meus filhos estão mudados. Não gosto do que estão fazendo.
— O que foi, Neusa?
— Sei que você mudou de religião, freqüenta outra igreja. Gostaria de saber como se sente.
— Muito bem. Depois que fui para lá, minha vida mudou. Tenho fé. Sei que meu Deus nunca vai me abandonar se eu for fiel, se fizer tudo certo.
Os olhos de Dorotéia brilhavam, seus lábios entreabriram-se em doce sorriso.
Sua expressão mudou como se ela estivesse tendo uma visão celestial.
— Conte-me como é isso.
Dorotéia falou da bíblia, dos salmos, dos pastores, da regras da igreja com euforia e disposição. E concluiu:
— Agora encontrei meu caminho. Estou feliz.
— Puxa! Você está entusiasmada mesmo. — Hesitou um pouco, depois perguntou: — O que você acha do espiritismo?
— Coisa do demônio. Estamos no fim dos tempos. O diabo está tomando conta da
humanidade. Só vai se salvar quem seguir a igreja. Por que pergunta isso?
— É isso que me preocupa. Meu filho Osvaldo diz que fala com espíritos dos mortos.
— Cruz credo! Que horror!
— O pior é que ele que nunca ligou para Antônio nem para mim. É triste dizer, mas Osvaldo sempre nos desprezou. Agora aproximou- se de nós, está nos dando dinheiro, oque me chamou a atenção foi que Antônio também está mudado. Evita conversar comigo,
quase não pára em casa. Não sei o que fazer, a quem recorrer. Tenho de fazer alguma coisa.
— Tem mesmo, e depressa. Está claro que o diabo os está seduzindo. Cuidado. Ele é perigoso. Você não vai poder expulsá-lo sozinha. Hoje mesmo vou levá-la à minha igreja à noite. Tenho certeza de que esse demônio vai ser expulso de sua casa.
— Você faria isso por mim?
— Claro. Você é minha amiga e está correndo perigo. Acalme-se. Você será protegida.
Combinaram de ir à igreja naquela mesma noite. Dorotéia passaria mais tarde em sua casa.
Depois que ela se foi, Neusa sentiu-se mais calma. Estava tomando providências para ajudar a família.
Estava ansiosa. Dorotéia falara maravilhas daquela igreja, dos hinos, das pessoas, tudo. Neusa sentiu-se cansada e com sono. Olhou para o relógio. Tinha tempo de descansar um pouco.
Foi até o quarto e deitou-se. Foi relaxando e estava quase pegando no sono quando sua atenção foi despertada. Olhou para o canto do quarto e viu um homem alto, forte, que foi se
aproximando da cama. Ela reconheceu seu marido João. Estava remoçado, parecia bem-disposto.
Neusa estava atordoada e no primeiro instante esqueceu-se de que ele falecera havia muitos anos.
— João! Você sarou, está bem. Que bom!
— Neusa, abra seus olhos e aproveite a oportunidade que lhe está sendo oferecida. Osvaldo está dizendo a verdade. Acredite nele.
Foi aí que Neusa se lembrou e gritou:
— Você está morto! Isto é um sonho.
A figura de João estremeceu, balançou no ar e desapareceu. Neusa fez força para se levantar mas não conseguiu. Apavorou-se, quis chamar alguém, mas seu corpo não lhe obedecia.
Gastou alguns segundos na tentativa de mexer o corpo, até que por fim conseguiu dar um pulo e sentar-se na cama. Suava e estava muito assustada.
“Foi só um sonho”, pensou.
Mas aquela visão não lhe saía do pensamento. Depois da morte de João, sonhara com ele várias vezes. Entretanto, nenhum dos sonhos havia sido igual àquele. A presença do marido havia sido tão real que Neusa chegou a sentir o cheiro do perfume que ele usava em vida.
Era como se ele houvesse ressuscitado.
— Esta história de espíritos me perturbou. Por que fui meter-me nesse assunto?
As palavras de João não lhe saíam do pensamento:
“Osvaldo está dizendo a verdade. Acredite nele.” Lembrou-se de Dorotéia. Logo mais ela viria buscá-la para ir à igreja. Dissera-lhe que lá eles exorcizavam o demônio. E se ela se
sentisse pior?
Havia perdido completamente a vontade de ir. O melhor mesmo era não se envolver com essas histórias.
De repente lembrou-se de que a vida de Dorotéia não mudara nada. O marido continuava desempregado, o filho brigando com a irmã porque ela resolvera namorar um rapaz que ele
dizia ser malandro. Até a própria Dorotéia continuava exausta, uma vez que tanto o marido quanto o casal de filhos, além de não ajudar em nada em casa, viviam reclamando da
comida que ela fazia, das roupas mal passadas, da casa mal arrumada.
Não. Dorotéia mostrava-se mais animada, mas sua vida continuava na mesma.
Mais tarde, quando ela apareceu, conforme o combinado, Neusa disse que não iria.
— Pelo que vejo, você já se deixou dominar por “ele”. Reaja. Vamos. Você precisa se salvar e salvar seus filhos. No dia do julgamento final, todos vocês serão destruídos para
sempre.
— Não é que eu não queira ir. Mas não posso sair agora. Estou esperando Antônio. Ele telefonou e disse que virá mais cedo para o jantar. Tenho de esperá-lo. Irei outro dia.
— Aposto que ele fez isso só para impedi-la de ir. O diabo sabe de tudo e o fez ligar para segurar você. Ainda acho que deve ir.
Quanto mais Dorotéia insistia, mais Neusa sentia vontade de não ir. Foi categórica:
— Não adianta, Dorotéia. Hoje eu não vou.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas depois não venha com ares de preocupação reclamar comigo.
Depois que ela saiu, Neusa respirou aliviada. Começou a desconfiar que havia alguma coisa errada na insistência dela. Não gostava de ser pressionada. Sentia vontade de fazer o
contrário.
Decidiu ter uma conversa séria com Antônio. Esperou-o para o jantar, porém ele só chegou depois das onze. Vendo-a acordada, estranhou. Neusa gostava de dormir cedo.
— Ainda acordada? Aconteceu alguma coisa?
— Fiquei esperando por você. Temos de conversar. Não adianta dizer que está cansado, porque hoje não o deixarei ir.
Antônio sentou-se no sofá e respondeu:
— Está bem. O que houve?
— Você está mudado. Não conversa mais comigo como antes, nem me dá atenção.
— Antes eu ficava o dia inteiro em casa, mas agora estou trabalhando.
— Eu sei. Por isso mesmo tenho suportado a solidão sem dizer nada. Mas hoje você me disse algumas coisas que me preocuparam.
— O que foi?
— Não estou gostando dessa história de Osvaldo lidar com os espíritos dos mortos. Vocês mudaram muito. Hoje Dorotéia, que tem muita fé e é evangélica, me disse que os espíritos
dos mortos nunca se comunicam, que é o diabo que se faz passar por eles, para nos dominar.
Antônio começou a rir.
— Você ri, mas isso é sério — continuou ela. — Dorotéia disse que está chegando a hora do juízo final e que ternos de salvar nossa alma, senão nossos espíritos serão destruídos para sempre.
— Não acredito. Como você pode dar crédito a uma coisa dessas?
— Também não acredito, mas e se for verdade?
— Mãe, temos de ter bom senso, observar os fatos.
— Foi o que fiz. Veja só: Osvaldo nunca ligou para nós, e agora, de uma hora para outra, decide nos ajudar. Isso não lhe parece estranho?
— Não. Ele está fazendo isso porque percebeu que estava errado e quer corrigir.
— É, mas antes você me dava mais atenção. Agora...
— Você não tem nenhuma razão para preocupar-se. Nunca estivemos tão bem. Estamos progredindo, nossa família está se entendendo como nunca. Nada nos falta. Você está sendo mal-agradecida.
— Mas, se for coisa do diabo, ele vai cobrar um preço caro por tudo isso. Quem morre nunca mais volta. Você acredita que os mortos possam se comunicar?
— No começo pensei que Osvaldo estivesse tendo alucinações. Mas depois as coisas começaram a acontecer, e hoje estou inclinado a reconhecer que ele está dizendo a verdade.
Osvaldo afirma que, quando o corpo morre, aquele espírito vai viver em outro mundo. Diz que a carne é como uma roupa que cobre o corpo espiritual e eterno. Todos somos assim.
Depois da morte, ficamos com o corpo espiritual, e, apesar de viver em outra dimensão, continuamos sendo a mesma pessoa, com os mesmos gostos e afetos.
Neusa ficou pensativa. Seria por isso que João, apesar de morto, continuava se interessando pela família?
— Será?
— Osvaldo diz que é. Diz também que, depois de certo tempo no outro mundo, nossos espíritos voltam a nascer na Terra. As crianças que nascem no mundo estão voltando para continuar a aprender mas já viveram muitas vidas aqui antes.
— Isso é demais. Como pode ser?
— Jesus ensinou isso. Está na bíblia.
— Você nunca se interessou por religião.
— Sabe, mãe, o que tenho visto no sítio tem me feito pensar. Hoje estou certo de que existe muito mais coisas além dos nossos cinco sentidos.
— Você me deixa curiosa. Como sabe?
— Osvaldo consegue ver e ouvir os seres do outro mundo.
— Como sabe que é verdade?
— Porque ele dá recados dos parentes mortos para as pessoas. Muitas provas e não há como duvidar.
— Você me falou que ele faz remédios de ervas. Como pode isso, se ele foi criado na cidade?
— Mãe, não adianta eu ficar falando. É melhor que você vá lá ver. Tenho certeza de que concordará comigo.
— Eu? Não. É muito perigoso. E se for coisa do diabo? Antônio riu bem-humorado e respondeu:
— Lá só se pratica o bem, só se fala em bondade e amor, perdão e harmonia. Se o diabo trabalhasse assim, estaria trabalhando contra ele mesmo e se tomando um anjo bom.
Neusa ficou pensando por alguns minutos. Não contou que tinha visto João nem o que ele lhe dissera. Antônio se sentia apoiado. Ela desejava refletir um pouco mais. Algumas coisas
que o filho dissera a impressionaram favoravelmente.
Afinal, Dorotéia não servia de exemplo para ninguém. Se ela não conseguia melhorar sua vida nem a da própria família, não estava em condições de ensinar nada. Queria ver quanto
ia durar a fé que ela alardeava. Quando saísse da euforia e percebesse que tudo continuava igual, procuraria outra coisa e faria tudo de novo.
— Agora vamos dormir, mãe. É tarde. Pense no que eu disse. Se quiser ir lá qualquer dia destes, posso levá-la.
— Vamos ver.
— Acho que deveria ir. Se está preocupada, precisa ver com seus próprios olhos como são
as coisas.
Ela concordou. As palavras de Antônio acalmaram-na. Podia ser que estivesse sendo precipitada. Afinal, de fato, a vida deles havia melhorado muito.
Antônio foi para o quarto. Convivendo com Osvaldo e as pessoas que o procuravam, começou a perceber que não havia somente espíritos bons que se comunicavam mandando mensagens para os entes queridos, mas também havia outros menos equilibrados que
interferiam na vida das pessoas, prejudicando-as.
Depois de receberem orientação de Alberto, o guia espiritual de Osvaldo, e de freqüentarem as reuniões no sítio ou no centro de Lídia, para onde eram encaminhadas, essas pessoas
voltavam aliviadas e muito melhor.
Isso o impressionava e fazia pensar. Ele nunca havia sido bem-sucedido em nada. Sua vida afetiva sempre fora um fracasso. Nas duas vezes que se apaixonara, em uma fora traído e,
na outra, rejeitado.
Desiludido, jurou nunca mais se apaixonar. As palavras de Neusa, quando a procurou para desabafar, nunca mais lhe saíram da lembrança: “Amor verdadeiro, meu filho, só de mãe.
Sempre estarei aqui para apoiá-lo.”
Apesar de gostar muito dela, sentia falta de motivação, de objetivos. Tornou-se indiferente às pequenas alegrias do dia-a-dia. A rotina o entediava, mas ele se conformou. A vida era assim mesmo, conforme Neusa dizia.
Agora, porém, Osvaldo dissera-lhe que cada um é responsável por tudo quanto lhe acontece. No universo não existe vítima. São as atitudes que criam o destino. Enquanto
você as mantiver, elas continuarão a produzir os mesmos resultados. As coisas ruins poderão ser afastadas se a pessoa descobrir qual das suas atitudes está provocando esse resultado e trocá-la por outra melhor.
Antônio sentia-se mexido, tocado profundamente em seus sentimentos. Assistindo às palestras de Osvaldo, questionava tudo, cheio de dúvidas, ansioso por entender o que sentia. Tinha dificuldade de analisar suas emoções.
Percebeu que não se conhecia. Não sabia dizer do que gostava, o que lhe causava prazer.
Uma tarde, ao olhar-se no espelho, notou como estava envelhecido, curvado, suas roupas eram deselegantes, sem graça, como ele mesmo.
Ficou chocado. Estava com trinta e oito anos mas aparentava muito mais. Passou a mão pelo rosto e notou que sua pele estava seca, sem vida, e seus olhos inexpressivos.
Na manhã seguinte foi ao barbeiro, mudou o corte dos cabelos, passou por algumas lojas e interessou-se por uma linda camisa de linho. Perguntou o preço. Era cara, a loja muito fina.
Mas havia recebido na véspera e num impulso a comprou.
Quando a vestiu, olhou-se no espelho e sentiu-se melhor. Seus olhos brilhavam satisfeitos, mas notou que as calças e os sapatos não combinavam. Dois dias depois, havia comprado
tudo.
Tomou um banho, arrumou-se bem e saiu para dar uma volta.
Satisfeito, notou alguns olhares interessados de duas moças. Foi o bastante. Sentiu-se valorizado, alegre.
A partir desse dia, passou a cuidar melhor da aparência. Observou que a mãe havia parado no tempo. Suas roupas eram antiquadas, seus cabelos sem brilho, nunca se pintava. A casa
estava velha, precisando de reparos e de pintura.
Falou com a mãe, mas ela não quis.
— Está como sempre esteve. Pintura é caro.
— Mas, mãe, há muitos anos não pintamos a casa.
— Bobagem gastar dinheiro com isso. Temos de guardar para nosso futuro.
Não sabemos o dia de amanhã. Eu posso ficar doente, você pode perder o emprego. Nunca se sabe.
Antônio não respondeu. Ela podia ter razão. Mas, a cada dia, mais e mais o incomodava olhar para as paredes desgastadas do seu quarto, os móveis velhos da cozinha, o tapete
desbotado da sala de estar, a cadeira em que ninguém podia sentar porque as pernas balançavam. Neusa recusava-se a jogar fora o sofá desbotado de almofadas tortas e desconfortáveis.
Era com prazer que ele ia à casa de Osvaldo, onde tudo, embora antigo, era conservado como novo. Havia flores nos vasos, as paredes eram bem pintadas e claras. No sítio também tudo era arrumado com capricho. Cada coisa em seu lugar.
Osvaldo dissera-lhe que a casa era reflexo de seu habitante. Uma casa malcuidada significava que a pessoa cuidava mal da própria vida. Seria verdade? Eles teriam cuidado
mal de suas vidas? Era por isso que haviam tido tantos problemas?
Aos poucos foi perdendo a vontade de ficar em casa. Apesar de abrir as janelas todas às manhãs, sentia um desagradável cheiro de mofo. Procurando descobrir de onde vinha, notava todos os detalhes em volta e não gostava do que via.
Quando reclamava com a mãe, ela respondia:
— Você agora está ficando enjoado. Porque ganha um pouco de dinheiro, está luxento.
Tudo aqui está como sempre esteve. Mas eu sei o que está acontecendo. Está procurando desculpa para me deixar aqui sozinha.
Uma tarde conversou com Osvaldo sobre o assunto.
— Não sei mais o que fazer com a mãe. Quero melhorar nossa vida, mas ela recusa. Não quer pintar a casa, trocar os móveis. Não liga para nada. A casa está no mais completo abandono. Apesar de gostar muito dela, estou pensando seriamente em me mudar.
— Ela ficará desolada.
— Eu sei. Vive pendurada em mim. Mas é claro que não penso em abandoná-la. Estarei lá todos os dias. Mas tenho o direito de viver em um lugar mais arrumado. Quando reclamo,
ela diz que é desculpa para abandoná-la.
— A mãe sempre foi assim. Nunca cuidou de si mesma como poderia. Foi você quem mudou.
— É verdade. Estou cansado de viver em um lugar feio, malcuidado, cheirando a mofo.
Aqui tudo é feito com capricho, bom gosto, há flores nos vasos.Mamãe não tem gosto nem capricho. Não estou me queixando.
É uma boa mãe, sempre interessada em meu bem-estar, mas é muito relaxada. Não acha que tenho razão?
Até certo ponto, sim. Você tem o direito de viver em um lugar bonito, bem arrumado. Uma casa, ainda que modesta, simples, bem limpa, arrumada com gosto e capricho, atrai energias positivas, provoca bem-estar em seus moradores, ao passo que o desleixo, os objetos quebrados, malcuidados, a falta de higiene são o ninho certo para energias
negativas, desagradáveis. Além de dificultar a ajuda dos espíritos de luz, favorecem a presença de entidades perturbadoras.
— Outro dia ouvi você dizendo isso.
— Por outro lado, há que ter paciência com mamãe. Ela também é espírito e em sua essência guarda muita sensibilidade à beleza, ao amor.
—A mãe? Não creio. Nunca vi pessoa mais crítica. Adora falar mal da vida alheia. Principalmente quando se junta com Dorotéia.
— Ela sempre foi assim.
— Antes eu tinha paciência, ouvia e até dava palpite. Mas agora cansei. Incomodam-me certos comentários. Nós não sabemos lidar nem com nossos próprios problemas e queremos
julgar os outros.
— Você percebeu que esse tipo de atitude não lhe agrada. Sabe por quê?
— Não.
— Porque descobriu que não precisa realçar os pontos fracos dos outros para se valorizar.
Ao contrário. Essa atitude é falsa e desagradável. Você está ficando mais consciente. Tenho ouvido comentários dos amigos dizendo que você remoçou, está mais bonito, elegante. Não
me espantaria se qualquer dia destes alguma moça bonita se apaixonasse por você.
Antônio corou de prazer. Ele também havia notado. Osvaldo continuou:
— Sabe, Antônio, diante dos desenganos, cada um reage de um jeito. Mas o medo de sofrer acaba sepultando a sensibilidade. A pessoa se fecha, procura ser indiferente e acaba
perdendo até a individualidade. Deprime-se, perde o prazer de viver, acaba não sabendo do que gosta ou o que quer da vida. A mãe sempre foi prisioneira medo. Seus pensamentos
são pessimistas. Julga que assim está se protegendo dos perigos. Isso é ilusão. A vida fará justamente o contrário Quanto maior a indiferença, maior será o acontecimento que virá para quebrá-la. Nós somos espíritos eternos, sensíveis ao bem, à beleza, à luz. Nossa alma
vibra ao toque dos valores verdadeiros.
— É difícil pensar que a mãe seja assim também. Osvaldo sorriu bem-humorado.
— Todos somos. Mas há momentos em que preferimos nos esconder na depressão e na incapacidade. Mas é inútil, porque a vida trabalha para nos transformar, para trazer à tona
toda a grandeza espiritual que guardamos em nosso mundo interior.
— Tem certeza disso?
— Tenho. Você era como ela. Assim como despertou para a vida à sua volta, ela também despertará. Ao invés de ir embora, se mudar, deixá-la só, faça o oposto: traga-a para onde você está agora. Desperte a sensibilidade dela, faça-a perceber toda a beleza que nos cerca.
Assim, aos poucos ela também vai recuperar a alegria e o prazer de viver.
Os olhos de Antônio brilharam comovidos.
— Puxa, se eu conseguir, será maravilhoso.
— Faça isso, mas não espere resultados rápidos. Ela pode ser resistente, demorar para desabrochar. Lembre-se de que ela se tornou assim para defender-se de seus medos. Largar essa postura pode significar a perda dessa proteção mantida durante anos. É uma ilusão,
mas é preciso coragem para deixá-la ir e aventurar-se em novos caminhos.
As palavras de Osvaldo calaram fundo em Antônio. Saiu de lá pensando no que fazer para conseguir o que pretendia.
Depois que ele se foi, Osvaldo ficou em sua mãe. Para ele havia sido muito bom ter sido criado por Ester e o marido. Aprendera muito com eles, embora naquele tempo se ressentisse porque não lhe deram o carinho que ele desejava. Agora, porém, reconhecia ter
recebido muito deles.
A educação esmerada, o respeito com que sempre o trataram apesar da situação financeira de sua família, a oportunidade de estudar, vestir-se bem, ter uma vida confortável.
Tudo isso fora melhor do que os mimos que julgava merecer. Sua mãe agarrara-se ao filho mais novo, única companhia que lhe restou, mimara-o de tal maneira que acabou por
transformá-lo em um homem fraco, sem vontade, vulnerável e incapaz de cuidar da própria vida.
Naquele momento, Osvaldo viu tudo claramente. Percebeu que, privado do aconchego da mãe, evitou ficar na mesma situação de Antônio. Felizmente o irmão estava acordando,
percebendo que podia tornar-se uma pessoa mais feliz e respeitada. Se Neusa também acordasse para a realidade, talvez eles pudessem conviver bem. Não seriam apenas pessoas que a vida reuniu nesta vida e que, acabando os laços do mundo físico, se afastariam.
Não seriam apenas uma família consanguínea mas sim uma família espiritual, ligada pelos laços da amizade e do amor.
Pensando na bondade divina que lhe permitira descobrir esse caminho, Osvaldo ajoelhou-se ali mesmo, na sala, e entregou-se à oração de agradecimento.

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