CAPÍTULO 3- CÉSAR SE PREPARA PARA UM ENCONTRO MACABRO

1.3K 258 16
                                    


Muitas perguntas impediam César de relaxar durante o longo voo.

"Vinte anos...", repetia para si mesmo. "Vinte anos...".

Questionava-se por que Miguel não o procurara durante todo aquele tempo...pensaria também que César havia morrido no acidente? Ou simplesmente seguia outra vida...uma vida onde César não tinha mais lugar? Teria outra pessoa? Novos amigos? Novos sonhos? Novos rumos?

Vinte anos era uma vida inteira!

Todos os planos que haviam feito juntos...todos os sonhos...a cumplicidade...juras de amor eterno...

_O senhor deseja uma bebida?_assustou-se com a aeromoça.

Essa era uma das desvantagens de viajar na primeira classe: aquela insistência constante em saber se o passageiro estava confortável ou se tinha alguma exigência ou reclamação. Arrependeu-se por não ter escolhido a classe econômica, talvez usado documentos falsos que não o ligariam a uma pessoa pública conhecida por tantas pessoas nos Estados Unidos e no mundo. Algumas pessoas o haviam reconhecido no aeroporto, pedido autógrafos, confessado que tinham lido o seu (SEU???) livro e gostado.

Negou a oferta da aeromoça e agradeceu, depois voltou a se fitar no reflexo da janela. Ao lado, um passageiro de meia idade, gordo e careca, roncava num sono profundo, fato que o fez ficar agradecido pelo desinteresse dele em seu colega de viagem.

Ficou lembrando das palavras do homem no banheiro da exposição "não se encontra o que não se procura...".

Realmente, só voltara ao Brasil algumas vezes, naqueles anos todos, nunca novamente na sua cidade, na cidade em que ele e Miguel haviam construído uma vida juntos e vivido os melhores momentos de suas vidas...onde haviam se conhecido, estudado, feito planos possíveis e impossíveis  para o futuro...cidade onde acontecera a tragédia que quase o matara e que  ele imaginara que Miguel tinha morrido.

Nas poucas vezes que viera ali...sempre discretamente para resolver alguma pendência e fugindo da possibilidade de se encontrar com alguém...sempre o mais rápido possível e só nos arredores da cidade, fora do centro e da agitação, para acompanhar, na maioria das vezes, os trabalhos na construção de sua casa. Eram tantas exigências com os arquitetos que ele tinha que vir supervisionar os trabalhos ele mesmo, algumas vezes. Tantos detalhes que não podiam ser esquecidos...que não podiam ser mudados...que tinham que ser rigorosamente respeitados...para que a casa ficasse idêntica àquela daquele desenho antigo.

Será que, em alguma daquelas visitas,  cruzara com Miguel e não o reconhecera? 

_Não se encontra o que não se procura..._as palavras do louro retumbaram novamente em seu cérebro atormentado.

Ele mesmo não se reconhecia ou conseguia ligar a imagem de agora àquela que tinha há vinte anos.

Era um rapaz magro, vinte e poucos anos, rosto ainda cheio de espinhas, olhos vivos, cabelos fartos...não essa imagem de homem maduro, ombros largos, barba bem feita, olhar autoritário e os cabelos meio grisalhos. Sempre num estilo despojado, alguma bermuda surrada, sem camisa ou com camisetas folgadas...tão diferente daquele estilo de empresário bem vestido de agora.

Fechou os olhos tentando formar o rosto de Miguel envelhecido vinte anos...teria os mesmos cabelos presos num rabo? Ainda seria dono de um par de olhos desafiadores que haviam feito César assumir para os pais o romance e enfrentar todo o preconceito? Ainda poderia tocá-lo daquele jeito...nos pontos certos e...como Miguel dizia...tirá-lo de órbita?

Sabia que não conseguiria dormir e, muito menos, sabia que nada o livraria da dor de cabeça que se intensificava cada vez mais, parecendo só esperar a hora certa de explodir o seu crânio.

Já imaginava a cena do crânio dele explodindo com um som retumbante, tamanha era a pressão que encerrara em si naquelas últimas horas. Sabia que o momento da explosão seria provocado por uma imagem...uma visão totalmente incoerente...ilógica...a visão de uma pessoa morta...como naqueles filmes de terror que assistiam na infância e adolescência e os faziam tremer de pavor: a imagem de uma pessoa morta há anos se materializando bem na frente de seus olhos.

Uma força estranha, porém, o arrastava para aquele acontecimento fatal: ver  o rosto de alguém que ele julgara estar morto há vinte longos e tortuosos anos de sua vida.

O seu companheiro de viagem roncou um pouco mais alto ao seu lado, como se compartilhasse das imagens e das divagações de César.

Invejou o homem que tinha em si a liberdade de viajar sem se preocupar com assuntos tão sérios quanto os dele.


_________________&&&__________________

Se gostou deste capítulo, não se esqueça de votar. Sua opinião é muito importante! Valeu! Abraço!

MEU CORPO NÃO TE ESQUECE!-Armando Scoth LeeOnde histórias criam vida. Descubra agora