William dormiu bem. Joana não. Cochilou algumas vezes mas acordava de sobressalto, preocupada, insegura.
Em dado momento, aninhou-se nos braços de William, mas era estranho. A noite costuma ser hostil com angustiados.
A manhã chegou e a sensação no coração de Joana era de alívio. Ver o sol nascendo e iluminando as janelas do apartamento era o fim do martírio. É mais fácil lidar com a realidade do que com a suposição.
William notou o semblante carregado de Joana.
- Dormiu mal, Joana? Parece cansada.
- É, acabei ficando com insônia.
- E por que não me acordou?
- Tu dormia tão bonito que dava gosto. – disse ela, tentando desviar o real motivo.
William riu e terminou o café. Joana ficou feliz por conseguir encerrar o curto interrogatório. Não quis se arrumar muito, mas também não queria passar a ideia de que estava mal para Rodrigo. A maquiagem leve foi só para disfarçar as olheiras mesmo.
O casal recém-formado saiu mais uma vez do apartamento rumo a seus respectivos trabalhos.
Rodrigo passou a noite em claro. Era bem mais fácil pedir a ajuda de Max para devolver o documento perdido a Joana, mas havia algo nele que pedia que fosse até lá.
O desenho de possíveis conversas com o mínimo de constrangimento foi o que roubou o sono do locutor. Era preciso ser educado sem transparecer nenhuma dor. Afinal, ainda havia dor?
Maria era uma companhia incrível e tinha tornado os dias mais fáceis. Será que a dor era real ou só uma desculpa para não seguir em frente, não viver uma nova vida?
Olhar para Joana seria um bom termômetro.
Ao sair de casa, o telefone de Rodrigo tocou. Era seu Reinaldo, o pai.
- Bom dia, filho. Tu tá bem aí?
- Oi pai. Tô sim. E tu, tudo certo?
- Tudo tranquilo aqui. Tu sabe que se precisar do pai, eu tô sempre aqui né?
- Sei pai. Sei sim. Obrigado por tudo.
- Tu sabe que a Joana é uma guria boa. Fiquei muito triste que vocês se separaram.
- Eu sei, pai. Também fiquei muito triste. Mas não queria que depois de tanta coisa boa a gente parasse de se admirar. Foi melhor assim.
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- É tu que sabe das coisas, guri. O pai tá sempre aqui, viu? Quando tu vem me visitar?
- Logo, pai. Logo. Prometo. Sei que faz tempo que não vou, mas é que com essa coisa do divórcio e o serviço aqui tá bem difícil.
- Eu sei, meu filho, eu sei. Eu tenho que ir agora que a lida me espera. Mas tô sempre com o pensamento contigo. Não se esquece.
- E eu contigo, pai. Obrigado por ligar. Eu precisava muito disso hoje.
- Eu também precisava. Se cuida aí, guri. Tchau.
- Tchau.
A ligação do pai acalmou Rodrigo e ligou o sinal de alerta: tinha quase seis meses que ele não ia a Milonga. Já era hora de passar um fim de semana por lá para ficar com o pai.
Ocupado com os pensamentos, quando se deu conta, Rodrigo já estava na frente da loja de Joana. Olhou para dentro, distraído, e seu olhar cruzou com o dela, que parou o que estava fazendo.
Ambos não entendiam como era possível sentir tanto medo de alguém que esteve tão próximo.
Rodrigo respirou fundo e entrou. Joana ficou imóvel atrás do balcão. Cristina estava no estoque, mas disse para Joana chamar se precisasse de qualquer coisa. Se olharam e deram um sorriso amarelo. Rodrigo puxou a carteira e localizou o documento da ex-mulher, colocando-o rapidamente em cima do caixa.
- Eu não sei quando foi que acabei ficando com isso.
- Deve ter sido na última eleição... – disse, Joana, rindo de nervosa.
- Pode ser. – respondeu Rodrigo, um tanto apático.
O silêncio reinou mais uma vez. Como dois boxeadores, eles se estudavam. Rodrigo rompeu a quietude para disparar um cruzado de direita:
- Vi que tu tá com um cara. Fico feliz que esteja bem. – o coração queimava, mas o rosto não se contorceu em uma careta.
Joana sentiu o peito arder, mas também colocou o orgulho à frente para responder:
- É, estou sim. Tá muito no começo ainda, mas acho que pode dar certo.
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Embora conhecesse Joana há quase trinta anos, Rodrigo se deixou levar pela emoção e entendeu que o rosto dela passava verdade. Quando viu, já tinha falado outra vez:
- Também estou com alguém. Tem sido muito diferente e tal, mas também estou tentando.
Foi a vez de Joana ficar impaciente. O pé direito começou a bater no chão discretamente, mas em ritmo frenético. Engoliu em seco para responder:
- Puxa, eu fico bem feliz por ti também.
O choque de ambos com as informações durou só um pouco mais. Ao final, eles já se olhavam diferente. Rodrigo queria muito que Joana fosse feliz. E vice-versa. Como um time que sai de campo derrotado depois de dar tudo de si pela vitória, ambos se entregaram a um desejo sincero de que o outro ficasse bem.
Não por isso tudo aquilo era menos doloroso. Foi Joana que encerrou a conversa:
- Olha, eu sei que tudo é bem constrangedor nesses primeiros tempos, mas vai ficar tudo bem. A gente pode até ser amigo de novo, com o tempo. Eu quero muito que tu seja feliz, Rodrigo. Muito mesmo. Tu é uma pessoa importante na minha vida.
Joana sentiu uma gota de suor brotando na nuca. Rodrigo hesitou por alguns instantes e respondeu:
- É, eu também desejo que tu seja muito feliz, Joana. Mesmo. Lamento por tudo que aconteceu antes. Espero que a gente possa se perdoar devagarinho pra que fiquem só as lembranças boas.
- Eu espero também. – concordou ela.
Rodrigo deu uma última olhada na loja e, com um novo sorriso amarelo, saiu. Antes de cruzar a porta, olhou para trás e disse um “tchau” que soou mais alto do que o planejado.
Joana respondeu:
- Obrigado por me trazer o título.
Ele já estava na rua quando gritou um “de nada”.
Cristina surgiu e Joana desabou.
- Acabou mesmo, amiga. Ele tem outra relação também...
- A fila não andaria só pra ti né, Joana? Ele tem esse direito também.
- Tem, eu sei. Mas é tudo tão esquisito...
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Joana chorava em silêncio no abraço de Cristina. A funcionária consolava a chefe com um afago consistente. Quando as lágrimas diminuíram o ritmo, Cristina olhou nos olhos da amiga e disse:
- É só nesse começo, tá? Nos primeiros tempos. Vai passar também. Tu já viu sofrimento que dure pra sempre?
- Não. – disse Joana, quase sem volume.
- Esse também não vai durar. Te prometo.
Joana sorriu, sem graça.
Rodrigo seguiu o caminho para a rádio pensativo. O que Seu Reinaldo dizia sempre tinha muito peso em sua vida e aquele “Joana é uma guria boa” era algo que reverberava na cabeça. Contudo, ela já estava com outro cara. E ele, afinal, estava com outra menina. O tempo precisava curar tudo isso.
Chegou à rádio e começou o “Manhãs de Alegria” como sempre. Enquanto programava as músicas do bloco seguinte, a imagem de Joana à sua frente ainda era nítida. Rodrigo estava no automático.
Na volta do intervalo, anunciou mais um bloco musical de meia hora sem intervalos. A primeira música era Torn, de Natalie Imbruglia. Quando os primeiros acordes começaram a soar, ele se deu conta que selecionou a música que mais representava sua história com Joana para abrir o bloco.
Foi levado para outro tempo de sua vida. Em 2003, quando começou a namorar com Joana, “Torn” já era uma música antiga, do final dos anos 90, mas era a preferida dos dois.
Foi impossível conter as lágrimas.
Os operadores de áudio perguntaram se ele estava bem e Rodrigo respondeu que era só um dia difícil.
Ele já tinha dedicado aquela música algumas vezes a Joana.
Cristina organizava algumas coisas no estoque com o celular sintonizado na Rádio Novo Porto. Ao ouvir a música, sentiu um calor no peito. Sabia da história que a envolvia, mas decidiu rapidamente por não contar nada a Joana. Os tempos eram confusos. Ela não precisava de mais isso.
Mesmo sem ouvir rádio por entre as gôndolas da loja, Joana, mais calma, cantarolava a mesma melodia sem lembrar direito que música era.
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Meu caminho sem você
Romance(HISTÓRIA COMPLETA) Rodrigo e Joana se conheceram ainda crianças. Foram o primeiro amor um do outro e começaram a namorar com 15 anos. Aos vinte, casaram. Aos trinta, numa cidade maior, se separam. Tudo parece tomar outro caminho. Mas, afinal, como...