Ao ver Max entrando na loja, Joana gelou. Ele não costumava visitá-la com muita frequência. Foram bons amigos de infância em Milonga, mas a partir da adolescência e do início do relacionamento dela com Rodrigo, parecia que tinha nascido uma distância imensa entre eles. De certa forma, ambos disputavam internamente a atenção de Rodrigo e isso os colocava em posições antagônicas.
- Bom dia. – disse ele.
- Bom dia. – respondeu Joana. – Aconteceu alguma coisa, Max? – ele estava muito estranho e nervoso.
- Aconteceu. Há muito tempo. Só que eu nunca tive coragem de dizer e resolver. Depois de tudo que aconteceu, acho que chegou a hora.
- Tu tá me assustando, Max.
Max tirou a carta do bolso do casaco e disse:
- Eu preciso que tu entregue isso aqui pra Cristina. Ela vai saber do que se trata.
Joana ficou intrigada. Nunca soube de nenhum envolvimento entre Max e Cristina, eles sempre foram completos estranhos nos 15 anos em que se relacionou com Rodrigo. Nos encontros que envolviam os amigos, sequer se cumprimentavam. De toda forma, sabia que parecia ser um assunto sério e, apesar do estilo de vida, ela sabia que Max era uma pessoa confiável.
Ela continuou:
- Tá bem. Eu entrego sim. Tem certeza que tá bem, Max?
- Tenho. Só um pouco tenso por ter levado tanto tempo pra tomar uma atitude – ainda que covarde – pelo meu passado. Obrigado por se preocupar.
Joana sentiu que era algo muito pessoal. Teve tato para não se aprofundar demais.
- Desde quando a gente é educado assim um com o outro? – brincou Joana, num tom de descontração que ela mesma estranhou. Max já estava na porta.
- Desde nunca. Acho uma pena que a gente tenha enterrado a amizade na infância em Milonga.
- Quer saber? Eu também.
- Sério?
- Sério. Me desculpa por ter sido tão chata com você no tempo que estive com Rodrigo. Não precisava ser assim.
- Eu também nunca ajudei.
- Estamos quites então?
- Estamos. Pra completar a redenção, só preciso que entregue isso pra Cristina.
- Pode deixar. Vai tranquilo.
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Max estava mais tranquilo mesmo. Joana guardou a carta com cuidado dentro de um caderno de anotações que só ela usava.
Na manhã seguinte, quando Cristina chegou, Joana já estava lá.
- Que milagre a patroa chegar antes da funcionária. – provocou Cristina.
- É pra dar o exemplo. – retrucou Joana. – Tudo bem, amiga?
- Tudo.
- Como está o processo do divórcio?
- Já está tudo meio acertado. O Olavo vai pra outra cidade. Eu acho que é melhor pra gente.
- Pode ser. Olha, eu sei que talvez não seja o melhor momento. Eu nem sei do que se trata. Mas alguém passou aqui ontem e deixou isso pra ti.
Cristina pegou a carta com delicadeza, coisa que era rara, e perguntou, já com lágrimas nos olhos:
- Quem foi que trouxe isso?
- Acho que você sabe quem foi.
- Eu perguntei quem trouxe isso... – disse Cristina, nervosa e já chorando.
- Foi o Max, amiga... Vocês tiveram alguma coisa no passado? Por que nunca me contou?
- Eu não quero falar sobre isso. Joga essa carta no lixo.
- Eu não posso, Cristina, prometi que entregaria.
- Eu não quero essa carta. Joga fora. Estou te autorizando. Se ele perguntar, eu confirmo que você me entregou e joguei fora. Eu vou trabalhar.
Cristina desapareceu escada abaixo. Joana ficou preocupada com a história, mas percebeu que a amiga precisava de um tempo. Tudo aquilo era muito novo também para Joana e, por isso, ela escolheu ficar em silêncio por algum tempo e absorver o que estava acontecendo. Era um sinal de maturidade depois de tudo que aconteceu em sua vida também.
O dia passou e Max estava tenso. Em casa, tinha certeza que, pela falta de retorno, Joana não tinha cumprido sua promessa e entregado a carta a Cristina.
- Como é que fui confiar nessa guria...
Três meses se passaram, e a estada de Rodrigo nos Estados Unidos chegou ao fim. Com o tempo, aparou as arestas do seu relacionamento com Larissa e, agora, tudo parecia estar muito bem. Cada um tinha entendido as limitações e costumes do outro.
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Rodrigo percebeu que faltou muito esse tipo de atitude com Joana. Mas já não era importante pensar nisso.
Contudo, não esperava o revés que estava por vir naquela última saída da universidade. Depois de chorar na última aula por lembrar de todo o caminho que percorreu para chegar àquele final, saiu de mãos dadas com Larissa pelo campus para uma caminhada lenta de despedida.
Na sequência, iria para o dormitório fazer as malas e organizar as últimas coisas para retornar ao Brasil no dia seguinte.
- Foi tudo tão lindo aqui que eu nem acredito que vivi isso. – disse Rodrigo.
- Eu também achei tudo incrível. Foi do jeito que planejei. É uma alegria muito grande pra mim.
Em função de toda a correria de final do curso, Rodrigo e Larissa procuraram aproveitar bem os momentos, mas não conversaram sobre o que fariam a seguir. Um pouco por esquecimento, um pouco por medo das respostas.
- E então, o que tu vai fazer agora que voltaremos ao Brasil? O Ceará é bem longe, mas eu posso fazer minhas economias pra te ver uma vez por mês, pelo menos.
Larissa franziu o cenho e respondeu:
- Brasil? Como assim? Você vai voltar?
- É claro que vou voltar. O período era um ano, eu não tenho dinheiro pra me manter aqui. Não tenho nem visto pra permanecer.
- Você não viu nada disso antes de hoje?
- É claro que não... eu imaginei que tu soubesse que eu voltaria para o Brasil... foi o que eu disse desde o início, eu ganhei uma bolsa...
- Sim, eu me lembro bem. Mas achei que você, ao menos, tinha considerado articular contatos e ficar por aqui pra prosperar... Voltar para o Brasil é uma ideia ridícula...
- Larissa... eu tenho meu pai, meus amigos, muita coisa no Brasil... estou com saudades... meu plano era ficar um ano e tu sabe disso...
- Você não pode estar falando sério...
Rodrigo começou a perder a paciência que fora construída naqueles meses para com o jeito de ser de Larissa. Ela tinha feito o mesmo, mas agora parecia estar jogando tudo no lixo.
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Ele ficou em silêncio por mais alguns instantes. Larissa aproveitou:
- Fica em silêncio porque não sabe o que fazer, né? Se tivesse se planejado antes, nada disso estaria acontecendo. É por essas e por outras que nunca deixou de ser um locutorzinho de cidade de interior.
- Nada disso o quê, Larissa? Eu nunca quis ficar aqui pra sempre. Só na tua cabeça que todo mundo tem que pensar do mesmo jeito que tu!
- Bom, acho que já está bem claro o que vai acontecer aqui. – disse ela.
Eles pararam a poucos metros da entrada dos dormitórios.
- A gente devia ter conversado sobre isso antes. Eu errei. – disse Rodrigo.
- Não se deve conversar sobre ser fracassado.
- Eu sou fracassado? Sou fracassado só porque não penso como tu?
- Não. É fracassado porque prefere viver uma vida medíocre.
- Pelo menos eu vivo uma vida.
Larissa desferiu um tapa no rosto de Rodrigo. Ele ficou em silêncio. Tudo aquilo era absurdo. O sucesso era uma obsessão tão grande que ofuscava todo o brilho e beleza daquela mulher. Ela completou:
- Vá ser medíocre. Não preciso te desejar sorte porque pra ser medíocre não se precisa de nenhuma.
Rodrigo perdeu o último resquício de paciência.
- Vá à merda, Larissa.
Entrou em casa e arrumou as malas. Não conseguia sequer chorar. No fim das contas, talvez tivesse sido bom que aquilo tivesse acontecido ali. Seria um episódio de sua história nos EUA que ele tentaria apagar da memória.
Na manhã seguinte, se certificou que Larissa não estava na porta quando saiu. Contudo, a encontrou no campus. Com a cabeça mais fria, se deu o direito de pedir desculpas por qualquer grosseria, mesmo que ela não merecesse.
- Desculpe por ter te mandado à merda. Não sou dessas coisas.
- Eu não me ofendi. – respondeu ela. – Adeus, Rodrigo.
- Adeus, Larissa. Obrigado pelos momentos bons que vivemos juntos.
- Obrigada também.
Rodrigo seguiu e Larissa chorou discretamente. Ele permaneceu sereno. A saudade de Novo Porto era maior.
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Rodrigo tomou o avião e, no fim da noite, estava em Porto Alegre. Quem o esperava no aeroporto era Max, com uma placa enorme em que estava escrito em letras garrafais:
DIDIGUINHO MEIRA
Ignorando a zoação, Rodrigo correu para o abraço do amigo.
- Que saudade, meu velho.
- Eu também tava com saudade de ti, cara.
- Como é que estão as coisas por aqui?
- Tá tudo bem. Teu pai tá bem também. Ué? E a nordestina que tu falou que viria junto talvez? Cadê?
- Eu tô morto de cansado. Vamos embora? Eu te conto no caminho.
Àquela mesma hora, Joana estava na casa de Cristina para não estar em casa e ter que ver Artur lá, há três meses sem ter pra onde ir. A situação era completamente descabida. Cristina começou:
- Tu tem que mandar esse guri embora, Joana. Tu tá fugindo da tua própria casa!
- Eu sei que sim. É que em alguns momentos eu acho que fui meio precipitada com William, e aí tento compensar com esse... eu tô uma bagunça!
- Tu tá é bêbada, amiga!
- Pode ser também.
- É sério. Passa a noite aqui, e amanhã de manhã tu vai pra tua casa e manda o Artur embora. Ele já teve tempo de sobra pra procurar outro lugar pra morar. Três meses, Joana, três meses!
- Tu tem razão. Eu vou fazer isso mesmo. Tu tem toda razão. Nossa, tu é muito minha amiga! Eu te amo, Cristina, te amo como a minha vida!
- Vaaaamos tirar essa cerveja aqui de perto, né? Acho que vai ser melhor.
- Hum.
Dois minutos depois, Joana estava dormindo, bêbada, mas decidida a colocar um ponto final na história insustentável que Artur estava ocasionando.
Ao chegar em casa, Rodrigo ligou para seu Reinaldo.
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- Oi pai! Já tô no Rio Grande!
- Que coisa boa, guri! Foi bem de viagem?
- Fui, tudo certo, tô cansado só. Tô morrendo de saudade de ti. Amanhã cedo eu vou aí te ver.
- E eu de ti, guri. Eu tive que me apegar no Max pra não dizer que queria que tu voltasse.
- Pai... eu te amo muito. Não esquece disso.
- Eu também, filho. Mas que amor é esse assim, de repente?
- Sempre existiu, pai. Mas eu precisei ficar todo esse tempo longe pra aprender que preciso te dizer isso mais vezes.
- Que bonito, Rodrigo. O pai fica muito contente. Tu mudou minha vida. Não te esquece disso. Quando tua mãe foi, se não fosse tu, eu não tinha mais por que continuar. Tu é meu parceiro. Sempre vai ser.
- Obrigado por tudo, pai. Tu também é muito, muito importante na minha vida.
- Agora vai dormir que tu deve estar cansado. Amanhã a gente se fala melhor.
- Tá bom. Vai tu também, pai. Não precisava ter me esperado chegar.
- Eu quis. Outra coisa. Agora que tu tá de volta, pensa bem se não vale a pena tentar de novo com a Joana. Ela é uma guria boa.
- Eu sei que é, pai. Se cuida então. Boa noite. Até amanhã! – Rodrigo não quis estender o assunto.
- Boa noite. Te espero com chimarrão.
A noite passou. Na manhã seguinte, depois de dirigir duas horas até Milonga, Rodrigo entrou na casa em que nasceu e cresceu e não viu o chimarrão pronto.
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Meu caminho sem você
Romance(HISTÓRIA COMPLETA) Rodrigo e Joana se conheceram ainda crianças. Foram o primeiro amor um do outro e começaram a namorar com 15 anos. Aos vinte, casaram. Aos trinta, numa cidade maior, se separam. Tudo parece tomar outro caminho. Mas, afinal, como...