Capítulo 48

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O programa transcorreu tenso. O diretor da rádio via, irritado, o número de ouvintes por minuto despencar nos monitores. Rodrigo errou algumas chamadas ao vivo e em alguns momentos, esquecia de retomar o comando do programa.

Até mesmo os ouvintes chegaram a mandar mensagens perguntando se ele estava bem.

É claro que não estava.

A noite anterior com Joana parecia ter sido um sonho. Tudo, absolutamente tudo tinha sido perfeito, como foi em outros tempos, mas com pitadas de magia que, juntos, nunca tinham experimentado. Era inegável que ainda havia uma conexão imensa entre os dois. Mas ele conhecia a história deles. Ao mesmo tempo em que sentia vontade de ligar imediatamente para Joana e colar os cacos de uma história tão bonita que tinha se despedaçado, não podia ignorar que ainda não estava completamente curado de Camila.

Longe disso.

Ainda estava muito ligado a ela. O amor por Camila, que cultivou com todo o cuidado para não repetir os erros que cometeu com Joana, ainda falava alto dentro de si. Aquele bilhete maldito assim que chegou na rádio o havia puxado violentamente de volta a um lugar de dor e dúvida.

Corpo e alma doíam. Sabia que independente da decisão que tomasse, haveriam renúncias. Se optasse por tentar de novo com Camila, teria de passar por cima de seu princípio de não perdoar uma traição. Passar por cima do próprio orgulho ferido.

Se optasse por tentar de novo com Joana, corria o risco de voltar para um lugar de onde, com muito custo, conseguiu sair. Assim, de fora, tudo parecia maravilhoso, mas ele conhecia aquela relação por dentro, em cada veia e extremidade.

Se optasse por ficar sozinho, provavelmente se arrependeria por jogar fora a chance de dois amores que verdadeiramente fizeram sentido para ele. Joana, um amor longo e cheio de nuances. Camila, um amor maduro, denso, breve e cheio de alegrias.

Tudo parecia arriscado demais.

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O programa daquele dia acabou. Parecia, para Rodrigo, ter tido o triplo da duração habitual. O diretor da NVP News passou e lançou um olhar fuzilador a Rodrigo, que nem percebeu direito.

Voltou para a sua mesa na redação e, em poucos instantes, Camila surgiu.

- Será que a gente pode conversar na sala de reuniões?
- Eu não sei o que tu quer dessa vez, Camila, espero que seja realmente importante. – disse Rodrigo, exalando uma autoconfiança que estava longe de ser real.
- É muito importante. Não vai demorar. Prometo.

Os dois saíram da redação sob o olhar atento de colegas curiosos. Cruzaram o corredor, subiram as escadas, e entraram na primeira sala de reuniões que estava vaga. As salas eram à prova de som, mas a visibilidade era total. Qualquer que fosse o assunto, era preciso que tudo fosse muito discreto.

- Então, Rodrigo, o que eu tenho pra te dizer não é nenhuma novidade, mas é muito importante. – começou Camila. – Eu nunca imaginei te trair. Digo isso de todo o meu coração. Eu pedi pra conversar contigo porque os últimos tempos têm sido terríveis pra mim. Eu achei que a tua distância em casa era o pior que podia acontecer. Mas o pior mesmo é ficar longe de ti e saber que a culpa foi minha.

Rodrigo ficou em silêncio. Camila continuou:

- Faz tempo que eu não me abro contigo porque nem sei por onde começar. Sei que tu não tem obrigação nenhuma de me perdoar, mas quero te dizer que, de fato, eu me arrependi muito do que fiz. Tu me conhece o suficiente pra saber que estou falando a verdade.

- Eu achei que conhecia. – respondeu Rodrigo, hostil. – E, sinceramente, não sei por que estamos tendo essa conversa. Já falamos sobre tudo isso antes.

- Rodrigo...

- O quê? – perguntou Rodrigo impaciente.

- Tu sabe quando eu estou falando a verdade... não sabe?

Resignado, Rodrigo respondeu:

- Acho que sim...
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- Então, quero que saiba que, se eu tinha alguma dúvida disso, pude tirar depois de tudo o que aconteceu. Tu é o amor da minha vida. Eu faria qualquer coisa pra te ter de volta, pra gente voltar pra nossa vida... eu sei que não tem como ser como antes, mas a gente podia ao menos tentar... eu sinto que tu ainda gosta de mim, tanto quanto eu te amo. Aprendi a te ler, Rodrigo. Eu sei o que você sente.

Ela sabia mesmo, embora Rodrigo detestasse admitir. Estava cansado, sensível e confuso. Por isso mesmo, tentou afastá-la contando a verdade:

- Eu passei a noite com Joana. Nos encontramos sem querer em Milonga. Não foi planejado, mas aconteceu. Acabei te dando o troco.

- Mas não era nisso que tu estava pensando.

- Nisso o quê?

- Em me dar o troco. Eu te conheço, Rodrigo. E sabe por que isso que tu chama de “traição” não me ofende? Porque tu tem razão em mais um ponto. No dia em que eu propus que tu me desse o troco pra que ficasse tudo zerado entre nós, tu disse que a nossa diferença não estava em perdoar ou não ou dar o troco ou não. Estava em ter compromisso com as coisas e pessoas. Tu tinha. Eu não. Joana não é uma traição, pra mim. Porque já nem estávamos juntos e, em segundo lugar, ela é uma pessoa que tu ama, em algum lugar de ti, por tudo que viveram juntos. Mas eu sei, e dói pra caramba, que se eu não tivesse te traído tu nunca teria feito isso. Tu nunca me trairia gratuitamente como eu fiz contigo. E isso te faz melhor que eu.

- Não sou melhor que ninguém... – retrucou Rodrigo, limpando rapidamente uma lágrima que insistia em escorrer.

Camila continuou:

- Se tu voltar pra mim, eu juro que isso nunca mais vai acontecer. Sei que minha palavra não tem valido muito ultimamente, mas queria muito que tu pudesse me dar essa segunda chance. Tu não pode negar que vivemos dias muito felizes.

- Os mais felizes da minha vida. – Rodrigo deixou escapar. Camila não conteve um sorriso.
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- Toma o tempo que tu precisar. – arrematou ela. – Eu vou estar te esperando. Sempre. Tu sabe onde me encontrar aqui ou onde estou morando. Esse é o endereço. – entregou um papel na mão esquerda de Rodrigo, já que a direita secava mais uma lágrima.

Camila olhou para ele sorrindo aquele sorriso que era capaz de derreter até uma geleira e foi embora.

Rodrigo sabia, e confiava na intuição, de que ela estava falando a verdade. Não havia mais o que tirar, nem pôr. A traição tinha mesmo sido um lapso. O amor por ele ainda estava ali.

Mas e o que viveu com Joana na noite anterior? Como apagar aquele misto de sensações que o terraço do Clube Esportivo Milonguense evocava?

Camila e Joana pareciam relações falidas e prósperas ao mesmo tempo. Rodrigo começou a entrar em parafuso.

Patrício entrou pela porta da loja matriz de Joana com o semblante pesado. Tinha perdido alguns quilos. Sorriu, sem graça, e colocou uma pasta com documentos sobre a mesa em que Joana estava sentada. Enquanto assinava, começou a falar:

- Patrício, eu quero te dizer que, não importa o que aconteça, eu sempre vou ser grata ao que tu fez por mim e pela minha empresa.

- E eu vou ser grato ao que tu fez na minha vida. – completou ele.

- Não leva pra esse lado... por favor. Eu não quero ter que ser dura contigo.

- Tudo bem. Eu só acho que a gente podia tentar de novo...

- Tu entende que eu não te demonizo, mas ao mesmo tempo o que aconteceu não tem muito sentido pra mim?

- Tu falava que me amava, Joana...

- E talvez ainda te ame mesmo. Mas não posso anular o que sinto por conta disso.

- Acho que tu nunca deixou de amar teu ex-marido.

- Eu já disse que o que senti por ti foi amor, Patrício. Espero que tu me entenda e se lembre quem foi que não entendeu bem as coisas por aqui...

- Tu me amou mais do que amou ele?

- Patrício... tu é um dos homens mais maduros que eu já conheci. Não vou te responder porque não quero que tu perca esse título.

Patrício ficou em silêncio. Joana continuou:
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- Eu não tenho como não ser grata e feliz por tudo que tu me ajudou a conquistar como pessoa, mas principalmente como empreendedora. Se eu consegui realizar meu sonho, muito devo ao teu conhecimento e à tua generosidade de compartilhar comigo.

Patrício respirou fundo. Começou a chorar e a abraçou. Ela o abraçou também. Ele saiu do abraço, enxugou as lágrimas e falou:

- Não precisa me pagar os últimos meses de consultoria. Fica como um presente e pedido de desculpas por ter te feito sofrer.

- De forma alguma. Faço questão. É o teu trabalho. Não podemos misturar as coisas.

Patrício ensaiou insistir, mas Joana foi irredutível. Patrício juntou os documentos na pasta mais uma vez e, depois de fechá-la, olhou sincero para Joana:

- Então... é isso?
- É isso. – disse Joana, com firmeza, mas ainda assim machucada.

Patrício beijou a testa da ex-noiva e disse:

- Que tu seja feliz. Me desculpa por ter te feito sofrer, mais uma vez.
- Estou de peito aberto, Patrício. Tem meu perdão.

Patrício sorriu um sorriso sem graça e foi embora. Nunca mais seus caminhos se cruzaram.

Joana se permitiu ficar algumas horas em silêncio. O movimento estava baixo e a funcionária daquela loja estava de folga. Depois de muito refletir e reviver mentalmente as cenas da noite com Rodrigo, decidiu que era hora de parar de imaginar e agir se quisesse algum resultado diferente.

Pegou o telefone e ligou, decidida para Rodrigo.

Tentou algumas vezes. Ele não atendeu.

Um temor invadiu seu corpo. E se tivesse sido somente algo de momento? Será que Rodrigo realmente sentiu o que ela sentira na noite anterior? Por que ele não atendia o telefone?

A tristeza que a invadiu naqueles instantes era pesada demais para não ser dividida. Deixou o orgulho de lado e ligou para Cristina:

- Jo... Joana? É tu mesmo?
- Sou eu, amiga... eu sei que a gente não tem se falado muito mas, será que a gente podia se encontrar?

Rodrigo entrou na sala da direção da NVP News depois de uma ligação curta e grossa:

- Sobe aqui, agora.
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Ao entrar na sala, o diretor da rádio sequer pediu que se sentasse. Jogou sobre ele um relatório e disse:

- Quase dois meses com audiência estagnada. Hoje, despencou. Olha, Meira, eu não sei qual o teu problema com a tua mulher, e pouco me interessa. Eu quero números. Eu quero anunciantes. Se essa pataquada de vocês vai fazer essa audiência despencar, são vocês que vão sofrer as consequências. Eu quero uma mudança de postura pra ontem!

Rodrigo tomou os relatórios nas mãos e, por alguns instantes, esqueceu seu dilema amoroso. Da ponta do pé, subiu uma raiva quente e nociva: a da ingratidão. Não mediu as palavras:

- Por acaso o senhor se lembra como era a audiência aqui antes de eu chegar? Era traço. TRAÇO. ZERO. Se assim o senhor entende melhor. EU e Camila colocamos essa rádio na liderança. E ainda estamos nela.

- Por quanto tempo, linguarudo?

- Eu não posso te dar essa resposta. A gente sempre vai precisar de novidades e tudo mais, mas preciso refrescar a tua memória. Estou acumulando funções aqui... trabalho quase dezoito horas por dia pra forrar os teus bolsos...

- E eu forro os teus por isso. Pode baixar o tom, estrelinha! Tu não vale tanto assim... eu te substituo em dois toques!

Aquele foi o golpe de misericórdia. Rodrigo retirou do bolso o crachá de diretor de jornalismo e apertou com tanta força que o quebrou ao meio.

- Pois se é tão fácil assim, pode procurar alguém pra apresentar o programa amanhã. Eu me demito. Passar bem!

- Eu mesmo apresento se for preciso, mas tu não bota mais os pés na minha rádio. FORA DA MINHA SALA, INGRATO!

Rodrigo não acreditava que tinha acabado de fazer aquilo. Contudo, junto do desespero e da vontade de voltar atrás, Rodrigo sentiu como se um armário saísse de cima das costas. A sensação de libertação suplantou qualquer outra.
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Juntou meia dúzia de pertences na redação, não falou com ninguém, e saiu sem rumo pelas ruas de Novo Porto. Chorou. O salário era incrível. Quando ele conseguiria outro emprego com aquele salário e aquele destaque? Era difícil imaginar.

Além de tudo isso, o dilema Camila/Joana retomou o lugar de destaque na vitrine de sua mente. Rodrigo não sabia o que fazer. Parecia que a vida despencava diante de si de maneiras diferentes.

Pegou o celular e viu chamadas não atendidas das duas. Não gostava daquela posição. Não gostava de sentir o que estava sentindo. Chorou.

Quando achou que enlouqueceria, sentiu um toque no ombro que conhecia bem, mas que pensava que nunca mais sentiria.

Virou-se e viu um sorriso sincero.

Era Maria.

Meu caminho sem você Onde histórias criam vida. Descubra agora