Capítulo 32

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- Pai? Tu tá aí?

Nenhuma resposta. Rodrigo entrou no quarto e seu Reinaldo estava lá, debaixo das cobertas. Com medo dos próprios pensamentos, se aproximou e passou a mão no rosto do pai. Estava frio. Aproximou os dedos das narinas. Nada.

Rodrigo respirou fundo. Saiu do quarto, petrificado, e partiu para o telefone fixo. Gravado na discagem rápida, estava o telefone da casa de Seu Valdir e Dona Ana, pais de Joana. As únicas pessoas de quem Rodrigo conseguia se lembrar naquele momento.

- Pronto! Falou a voz masculina do outro lado.
- Seu Valdir? É Rodrigo.
- Ô guri! Quanto tempo. Tá ligando da casa do teu pai, né?

Rodrigo sentiu o nó na garganta apertar. Ainda assim, conseguiu falar.

- Será que o senhor e dona Ana poderiam vir aqui? Eu acho... – Rodrigo parou por alguns instantes. – Eu acho que o pai faleceu.

O outro lado da linha ficou mudo por alguns instantes. Logo depois, disse.

- Nós estamos indo agora.

Rodrigo desligou o telefone, voltou ao quarto, deitou-se ao lado do pai e o abraçou. Chorou como nunca tinha chorado na vida.

Em Novo Porto, Joana chegava em casa com dor de cabeça. Artur estava na cozinha, só de cuecas, com um cheiro claro de falta de banho. A dor de cabeça a motivou a ser breve:

- Artur... quantos lugares tu já foi ver pra se mudar?
- Ah, ainda não tive muito tempo. Estou trabalhando em um novo romance e...
- Artur... quantos?
- Não fui a nenhum ainda.
- Então você vai hoje.
- Eu não vou poder, sabe o que é, eu...
- Não quero saber. Você vai hoje porque você vai embora daqui agora.
- Você seria capaz de me mandar embora sem ter pra onde ir?
- Seria não. Sou. Vai. Agora. Ou eu chamo a polícia.
- Pois chame!
- Não precisa pedir duas vezes.
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Joana ameaçou colocar a mão no telefone quando Artur implorou para que não fizesse isso. Duas horas depois, estava com a mala pronta, da mesma forma que três meses antes, com a mesma expressão de vítima e pedido de clemência. Dessa vez Joana estava cansada demais para atender. Levantou-se e abriu a porta, firme. Artur foi embora amaldiçoando Joana e sua “falta de compaixão e acolhimento”.

Quando Joana fechou a porta, o telefone tocou. Era a mãe.

- Oi, filha. Tudo bem? Eu te amo.
- Oi, mãe. Também te amo. Tudo bem por aqui, e aí?
- Filha, eu acho que seria importante tu vir pra cá hoje.

O coração de Joana acelerou.

- Aconteceu alguma coisa, mãe?
- O Reinaldo faleceu.

Joana sentiu o coração apertar imediatamente. Não pensou duas vezes.

- Eu estou indo pra aí agora.

Seu Valdir e Dona Ana chegaram e encontraram aquela cena comovente que os fez desabar junto com Rodrigo. Ele não queria sair de perto do pai mas, de repente, vestiu novamente a máscara da força para tomar as providências necessárias. Os pais de Joana o ajudaram muito.

Durante o funeral, Max ficou ao lado do amigo durante todo o tempo. Praticamente toda Milonga estava por lá e abraçou Rodrigo. Ele viu pessoas que não via há mais de vinte anos e tudo aquilo era uma grande loucura entre sofrimento e amor.

Em um dos momentos mais críticos, em que as lágrimas eram maiores que ele, Rodrigo olhou para a porta. Lá estava alguém que sempre acolheu seu sofrimento. Alguém que ele tinha certeza que nunca o deixaria na mão em um momento como aquele.

Joana se lançou igreja a dentro e o abraçou com toda a força que tinha. Choraram muito juntos. Ela também gostava muito de Seu Reinaldo. Não disseram palavra naqueles primeiros instantes.
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Era um abraço parecido com o que ele recebeu dela aos oito anos de idade quando, precocemente, teve que se despedir da mãe. Era o mesmo abraço depois do beijo desajeitado no terraço do Clube Esportivo Milonguense, que estava ali por perto. Era o mesmo abraço do dia em que se casaram e prometeram ficar juntos o resto da vida.

Joana tomou Rodrigo pela mão, como se nada tivesse acontecido naquele meio tempo, e saíram para tomar um ar. O abraçou outra vez. Mais calmos, foi ela quem começou:

- Como foi que aconteceu isso?
- Ele foi dormindo. Não sentiu nada, eu acho. Liguei pra ele ontem à noite, na hora que cheguei de viagem. Era perto da meia-noite, eu acho. Vim cedo pra cá pra visitar e, quando cheguei, ele já tinha ido.

Joana suspirou e, em seguida, acarinhou o braço de Rodrigo com a mão.

- Ele tinha muito orgulho de ti. Tu sabe disso, né? A mãe me disse várias vezes nesse ano que ele só falava que tu tinha virado gente importante, que tava estudando nos Estados Unidos. Ele te achava o máximo.

- Eu é que achava ele o máximo. Por muito tempo eu acabei tendo menos contato do que gostaria. Mas ontem à noite, sei lá. Ontem à noite a gente teve uma conversa muito amorosa, como nunca tivemos. Eu odeio essa coisa de dizer “parece que ele sabia que ia acontecer”. Mas é meio sem explicação mesmo. Ou pode ser que eu esteja envolvido demais com tudo.

- Vai ficar tudo bem. Eu prometo pra ti. Tu quer que eu fique aqui?
- Quero. – disse Rodrigo, sem pensar, para depois amenizar – Quer dizer. Se tu não tiver nenhum compromisso.
- Eu não tenho.
- É sexta-feira.
- Eu não tenho compromisso nenhum, Rodrigo.
- E a loja?
- Cristina tá lá. Fica tranquilo. Eu vou ficar aqui. Tu precisa de ajuda com alguma coisa de documentos, quer que eu compre comida, algo assim?
- Não. O pessoal já arrumou tudo. Quero que tu fique por ele. Ele gostava muito de ti. Falou de ti ontem, inclusive.
- Ele era um segundo pai pra mim, Rodrigo. Não pense que não.
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Rodrigo se despediu por alguns instantes e voltou para dentro, onde outros amigos o esperavam. Joana ficou sozinha, em silêncio, sentada em um degrau do lado de fora.

Tudo passou muito devagar e muito rápido ao mesmo tempo e, depois do sepultamento, Joana deu um último abraço em Rodrigo antes de ir embora. Ia aproveitar a viagem para dormir na casa dos pais e passar algum tempo com ele. A morte de Seu Reinaldo acendeu um sinal importante dentro de seu coração. Rodrigo não tinha mais pais. Ela tinha os dois, e os visitava muito pouco. Precisava mudar tudo isso.

Rodrigo decidiu dormir na casa do pai. Queria absorver os últimos resquícios da presença física dele ali.

Max se despediu também, ainda com muitas lágrimas nos olhos. Antes de ir, passou por Joana, que também chorava e, sem pensar, a abraçou.

Os dois choraram juntos como as crianças que foram em Milonga. Max não disse nada. Antes que ele se afastasse, Joana o interpelou:

- Eu entreguei a carta para a Cristina. Ela não quis ler. Mas eu vou insistir. Prometo.

Max sorriu. Não esperava ouvir isso. Para não deixar a voz trêmula tomar conta de tudo, respondeu:

- Te agradeço muito.

Para poder fechar o caixa daquele dia e manter o padrão de anotações que Joana costumava fazer, Cristina pegou o caderno que nunca pegava na mão. A carta de Max caiu imediatamente. Respirou fundo e decidiu que levaria a carta para casa e se prepararia para ler com calma, sem medo.

Chegou em casa, tomou um banho quente e resolveu todas as pendências domésticas que tinha. Assistiu um programa de humor de que gostava, vestiu o roupão e sentou-se na cozinha com uma xícara de chá. Achava ridículo fazer tanta cerimônia por aquela carta, mas só ela sabia a dor que a envolvia. Algo que nunca foi totalmente superado. Respirou fundo e abriu o envelope.
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Em Milonga, Rodrigo estava com os olhos pregados no teto de seu quarto. A vida com o pai passou diante de seus olhos. Mas não foi só isso. Aquela casa guardava lembranças especiais. Aquele quarto guardava lembranças especiais.

O jeito que sua mãe entrava cantando para acordá-lo. O primeiro dia em que o pai entrou ali para vesti-lo para ir para a escola depois da morte da mãe. O primeiro dia em que levou Joana como sua namorada para dentro daquela casa. A primeira vez com ela, que foi ali mesmo, naquela cama. Era impressionante como aquelas tábuas humildes tinham história para contar.

Joana também dormia no quarto de quando era menina. Os pais estavam no quarto ao lado. Seu Valdir roncava alto. Aquilo trazia uma sensação particular de conforto que lugar nenhum do mundo podia oferecer. Joana lembrou-se do primeiro dia que levou Rodrigo para sua casa como amigo da escola. Depois como namorado. Depois como marido. O tempo tinha passado rápido demais e ela não estava nem de longe do jeito que tinha planejado. Não adiantava fugir das curvas da vida. Cada escolha provocava efeitos. E isso era maravilhoso e perturbador ao mesmo tempo.
Ansiosos por não conseguirem dormir, Rodrigo e Joana aproveitaram a tranquilidade de Milonga para caminhar e ver a noite estrelada com uma lua que parecia ser propriedade da cidadezinha. Caminharam devagar pela rua principal em direções opostas mas que, na quadra seguinte, se encontraram.

Quando se olharam, pareciam ter apagado o passado recente.

Joana correu para Rodrigo. Ele a segurou com força e trocaram um beijo de uma intensidade que nunca tinham experimentado antes.

Meu caminho sem você Onde histórias criam vida. Descubra agora