Mais uma ânsia de vômito me atinge, fazendo eu me inclinar em direção a privada. Já é a segunda vez que eu vomito desde que acordei.
Dou descarga, enxaguo a boca no lavatório e, mesmo se eu quisesse evitar encarar meu reflexo no pequeno espelho a cima da pia, eu não conseguiria. Parece que um imã atrai meus olhos para a imagem deprimente de mim mesma.
Meu rosto marcado por pequenas cicatrizes antigas, fazem questão de lembrar-me que eu sobrevivi a um bombardeio. Meus ossos salientes, me dizem a todo instante: você está doente.
Talvez, fosse melhor eu não ter sobrevivido. Evitaria muitas consequências indesejáveis. Devido ao tempo que passei desidratada, soterrada nos escombros, minha saúde ficou degradada. Eu perdi uma quantidade absurda de peso, quase atingindo a anorexia. Dizem que foi um milagre eu ter sobrevivido. Mas eu não acredito em milagres. Acredito eu, que fora uma puta má sorte ter sido encontrada, pois, devido a doença, hoje eu sou obrigada a viver uma vida limitada.
Enquanto todos os outros lutam para serem os novos "Syrons", eu luto para continuar viva.
Os denominados "Syrons" são os alunos da Base que o Presidente Renderick recruta para substituir alguns soldados que morreram ou se machucaram gravemente em batalha.
Eles são obrigados a treinarem todos os dias, aulas como: defesa pessoal, combate corpo a corpo, manuseamento de armas brancas e tiro ao alvo.
Devido a minha doença, sou absolvida das atividades físicas, porém sou obrigada a frequentar aulas de estratégia, construção de armadilhas e tiro ao alvo também.
A sirene responsável por anunciar o intervalo soa na sala e o professor de Estratégias libera nossa saída enquanto deseja-nos um bom final de semana.
Espero a maioria dos alunos se retirarem para só então eu recolher meus materiais e sair da sala.
Sigo a multidão até o refeitório e, apesar da fila não estar gigante, há um número considerável de alunos na minha frente.
Após alguns minutos, consigo pegar uma bandeja e seleciono alguns alimentos que meu organismo aceita digerir.
Observo todas aquelas pessoas sentadas e confortáveis uns com os outros, e isso só serve para eu me sentir um peixe fora D'água.
- Ei, Jamie! - Uma garota me chama sentada numa das mesas. Percebo que ela é uma das minhas colegas de turma, só não consigo determinar de qual aula.
- Oi. - respondo, tentando não soar antipática. Eu não gosto muito de interação social, contudo, não trato ninguém com falta de educação.
- Senta aqui com a gente, se quiser. - Ela oferece, sorridente. Ela tem um rosto bonito redondo e com bochechas avermelhadas. Cabelos curtos castanhos e olhos da mesma cor.
Analiso as demais pessoas sentadas a mesa, algumas não me agradam muito. Não por eu ser seletiva demais, mas são algumas pessoas que me olham com repúdio e julgam minha aparência. Eles podem ser muito cruéis quando querem.
Percebo que estou demorando a responder, então, pigarreio e decido me juntar a eles.
Sento-me na cadeira vazia ao lado dela e de frente a uma garota de cabelos curtos platinados e repicados. Ela me encara com um olhar estranho, como se eu fosse um tipo de vírus contagioso.
- Essa é a Tina. - A garota ao meu lado começa a apresentação, animada. - Ela recebeu a carta do presidente, acredita?! Será uma das Syrons novata. - Sorri, claramente orgulhosa da amiga.
- Parabéns. - murmuro, forçando um sorriso. Não que eu não estivesse feliz por ela, eu estava. Era só que eu não a conhecia e não estava disposta a forçar amizade.
Tina ignora o que eu disse e volta sua atenção para a bandeja a sua frente, retornando a comer.- Este é o Marcel. - aponta para o garoto ao lado de Tina. Ele revira os olhos, recolhe a bandeja e se retira da mesa. - Ele é conhecido como o Sr. Estressadinho. - ri, enquanto leva uma colherada de comida a boca. - Não ligue para esse comportamento dele, não é nada pessoal. - ela assegura, mas não sinto firmeza em suas palavras. Todos os presente nessa mesa parecem ter algo contra mim. Eu só não sei se é devido a minha aparência, ou se há algo a mais.
- E por fim, eu. Chamo-me Lena. Prazer. - Estende a mão e eu a aperto, retribuindo seu sorriso.
- O prazer é meu. - digo, em tom baixo. Eu não era habituada a falar, e quando o fazia, era estranho até pra mim.
- Você vai se alistar esse ano? - pergunta, inocentemente, enquanto encara seu prato parcialmente vazio. Tina engasga com a própria comida enquanto tenta reprimir uma risada.
- Ahn... Eu acho que vou deixar a oportunidade para alguém mais capacitado. - respondo, inevitavelmente, soando rude. Ela me encara com os olhos arregalados, percebendo o equívoco que cometeu.
- Desculpe, eu não quis... Sabe...
- Tudo bem. - decido cortá-la antes que ela piore a situação. - Obrigada por me convidar, tenho que ir agora.
- Mas... - ela começa, mas eu levanto-me da mesa e deixo-a falando sozinha.
- Você é muito boa tentando ser solidária, só que não. - Ouço Tina caçoar dela enquanto gargalha.
Deixo o refeitório e sigo para meu compartimento. Todos os alunos compartilham o quarto, menos eu.
Quando cheguei a Base, ninguém queria se aproximar de mim, acreditando que eu era algum tipo de alienígena. Eles não estavam habituados a ver alguém com a aparência tão grotesca.
- Jamie, tudo bem? - A enfermeira Sue cruza meu caminho, parando para me cumprimentar.
- Olá, Sue. Estou bem, e você? - retribuo seu cumprimento.
Ela é uma das poucas pessoas que me permito ter uma amizade aqui dentro. Desde que cheguei, ela se dedicou a cuidar de mim, e mostrou-me que mesmo sendo sua obrigação por ser a enfermeira, ela realmente se preocupava comigo.- Ótima. - responde, sorrindo. - Não se esqueça de ir fazer seu check up hoje no final da tarde, ok?
- Eu nunca esqueço. - respondo. Ela assente e segue seu caminho, enquanto eu retomo meus passos em direção ao meu quarto.
Meu compartimento é diferente dos outros. Por ser individual, ele é mais espaçoso e no lugar de outra cama, ha um sofá de cinco lugares, acoplado a parede do lado direito.
Defronte ao sofá, há a minha cama que é acoplada a parede e abaixo dela tem duas gavetas, onde eu guardo meus uniformes.
A porta que libera minha entrada funciona com um mecanismo de reconhecimento, portanto, eu preciso passar meu cartão onde contém minhas informações pessoais e uma foto 3x4.
Após adentrar o compartimento, retiro meu uniforme e o jogo no sofá. Só com peças íntimas, jogo-me na cama e fecho os olhos. Não posso dormir. Daqui há dez minutos, preciso comparecer a uma reunião com o presidente.
Ele quer me fazer uma proposta, e sinto que não é nada bom.
*
GlossárioSyron: soldados
Compartimento: quarto
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Resquícios
Science FictionExiste um momento certo de descobrir o que somos e porque somos? Quando você abriu os olhos e teve consciência de que estava viva? Eu lembro-me vagamente dos acontecimentos passados, como se fossem fragmentos unindo-se a medida que as memórias se...