Resquícios

Capítulo 2 - Convite

  Abro os olhos sentindo o desespero dominar meu corpo. A reunião! Confirmo no relógio acoplado a parede que eu estou vinte minutos atrasada.

  Apressadamente, coloco meu uniforme. Devido a euforia, minhas vistas escurecem momentaneamente e sou obrigada a segurar-me na parede.

  Quando me recupero totalmente da tontura, saio do compartimento rapidamente seguindo para a área onde pegarei o elevador.

  Já no elevador, aperto o número 6-PR, onde fica o corredor da sala de reuniões.

  Alguns Syrons estão transitando por ali, enquanto conversam amenidades. Não é incomum a presença deles, pois a grande Seletiva está prestes a acontecer.

  Nesse evento, os alunos que receberam a carta do presidente irão se apresentar para alguns convidados do Presidente Renderick, onde deverão apresentar suas habilidades especiais. Os seis escolhidos serão os novos Syrons.

  Bato apenas uma vez na porta dupla e Renderick libera minha entrada. Ele sabe que sou eu, pois há câmeras de vigilância em todo o corredor.

— Desculpe-me o atraso, senhor Presidente. - digo, aproximando-me lentamente com as mãos atrás das costas. Ele me encara com certa curiosidade, não aparenta estar bravo. Renderick tem a pele negra, rosto de expressão séria e misteriosa, além de ser um homem bastante reservado.

— Jamie, você sabe o quanto eu preso pela pontualidade, certo? - Pergunta retoricamente, inclinando-se para frente e indicando a cadeira para eu me sentar. — Portanto, sei que não fez por mal e que não irá se repetir.

— Garanto que não acontecerá novamente, senhor. - garanto, evitando encará-lo nos olhos. Eu me sinto intimidada por sua postura imponente.

— Ótimo. - Ele diz. — Sabe o porquê chamei você aqui?

— Não, senhor. - respondo, engolindo em seco.

— Conheço o estado de sua saúde e compreendo suas limitações... - Ele inicia mantendo seu tom de voz neutro. — No entanto, acredito que você é capaz de fazer parte da nossa primeira Seletiva Anual. - diz, convicto. Ergo meus olhos em sua direção, esperando uma gargalhada que não vem. Ele só pode estar zoando com minha cara, não é?

— Senhor, meu corpo não suportaria um treino...

— Você se limita há apenas a seu estado físico, pequena Jamie, mas se esquece do mais importante: sua capacidade mental. - Ele abre um sorriso, o qual não tenho forças para corresponder. — Estive analisando seu desempenho nas aulas de Estratégia e Construção de armadilhas. Você é a melhor na sua classe, não é verdade? - Sim, era verdade. Mas onde ele queria chegar?

— Estou lhe fazendo apenas um convite. Você tem a semana inteira para pensar, terei sua resposta se você comparecer ao Evento.

— Mas qual será o meu papel na equipe se eu sou fisicamente inválida? - murmuro, sentindo meus olhos marejarem.

— Oh, não diga isso... Você não é inválida. Não deixe que sua doença defina você, Jamie. Seu cérebro é perfeito e, com ele, você pode se tornar a melhor Estrategista da equipe. Basta acreditar no seu potencial. - Ele sorri, amigavelmente. Engulo em seco.

  Penso em todas as pessoas que estarão assistindo o evento. Se eu não conseguisse passar, eu viraria motivo de piada. E se eu passasse, me considerariam um peso morto.

  Por outro lado, se eu continuasse minha vida monótona, eu conviveria com a indagação assombrando-me pelo o resto da vida: E se tivesse dado certo?

— Ok. Eu irei pensar a proposta. Obrigada, presidente Renderick.

— Não me agradeça. - responde sorrindo e me estende um envelope dourado onde há um carimbo com o brasão dos Syrons. Pego e o guardo no bolso da minha calça.

Levanto-me e deixo a sala, alinhando meus pensamentos.

  A proposta era realmente tentadora. Eu finalmente poderia ser alguém, e não somente a garota inválida.

  Eu queria fazer parte de algo importante e me sentir importante também. Contudo, havia o medo. Medo de fracassar e, consequentemente, dar motivos para rirem de mim.

  Passo pelas salas onde alguns Syrons estão treinando com o professor Page. Ele é responsável pelos treinamentos e missões em equipe, que executamos na área externa da Base. Especificamente, na floresta.

  Ultrapasso a sala e sigo para a ala Oeste, onde se localiza a enfermaria.

  Quando entro no corredor, observo que há aproximadamente dez alunos na fila, enquanto outros chegam quase ao mesmo tempo que eu.

  Algum tempo depois, o aluno que estava a minha frente sai do consultório e o Doutor Danton chama o meu nome. Ouço alguns comentários maldosos atrás de mim seguido de risadinhas. Ignoro e adentro a sala.

  O interior do consultório não mudou praticamente nada, embora tenha passado por uma manutenção.

A mesa de mogno do Doutor Danton continua a mesma, apenas a moveram de lugar.

— Boa tarde, Jamie. Pode se sentar. - Dr. Danton cumprimenta-me, indicando a cadeira estofada a sua frente. Assinto enquanto sigo na direção indicada, sentando-me em seguida.

— Está seguindo sua dieta direitinho? - pergunta, como se estivesse falando com uma criança de sete anos. Remexo-me na cadeira, desconfortável.

— Sim. - respondo, simplesmente. Ele assente e coça o queixo, aparentando pensar.

— Muito bem! É muito importante seguir a lista a risca se quiser voltar ao seu peso natural. - comenta, sorrindo. Reprimo a vontade de revirar os olhos. Ele sabe que eu perdi as esperanças de voltar ao normal, já se passaram dois anos e nenhuma melhora foi notada. Eu só regrido a cada ano que se passa.

  — Jamie... Acredite, você ainda tem uma chance.

— Eu não tenho mais esperanças. - o interrompo, suspirando alto. É a primeira vez que confesso em voz alta. — Tem tanta tecnologia aqui e, se nem assim encontraram uma forma de me ajudar, por que devo acreditar que tenho chances? - indago, deixando-o em silêncio por alguns segundos.

— Bem, porque... Nós estamos trabalhando nisso! Em breve, você estará totalmente recuperada, Jamie! Eu lhe dou minha palavra.

— Eu agradeço, doutor Danton. Mas, enquanto sua palavras forem somente palavras, eu manterei meu ceticismo. Prefiro me surpreender do que me decepcionar.

— Entendo. - ele responde, chateado. — Prometo lhe surpreender então, senhorita. - Sorri. — Agora, vamos para o check up. - Ele abre uma gaveta e retira seu ANL de lá, fico automaticamente tensa. Mesmo tendo feito inúmeras análises com aquilo, eu não consigo me acostumar.

— Pronta? - pergunta, aproximando-se de mim. Engulo em seco e assinto. Levanto-me, ficando ereta. Ele posiciona o ANL na altura dos meus olhos e uma luz verde irradia, provocando um desconforto momentâneo. Quando um barulhinho apita, ele desce o objeto fazendo uma leitura completa do meu corpo.

— Ótimo! - Ele diz, voltando a se sentar na poltrona atrás de sua mesa de mogno. Solto a respiração, sentindo-me aliviada.

— Está tudo certo com seu organismo. - informa, analisando o resultado do meu check up. — Pode se retirar agora. Até semana que vem!

— Até. - murmuro, sem emoção.
*
Glossário

ANL: aparelho de raio x capaz de captar instabilidade no organismo.