Estar nessa situação me fez perceber que não foi uma coincidência ser escolhida pelos Kjs para servir de espiã dentro da Base. Todos, inclusive o próprio presidente, me subestimam. Ninguém desconfiaria de uma pessoa fraca.
Pensar nessa frase me fez refletir... Uma pessoa fraca sobreviveria a tudo o que eu já sobrevivi?
A dor latejante no meu dorso me despertou dos meus pensamentos. Minhas mãos ainda estão atadas atrás das costas enquanto uma corda me prende a uma árvore. Não há sinal de Tina ou alguém de sua equipe ao redor.
Tento desatar o nó da corda, mas não obtenho êxito. Impulsiono meu corpo para frente a fim de afrouxar a corda que me prende a árvore, no intuito de passar por baixo e fugir, no entanto isso apenas me faz sentir mais dor. Por fim, desisto de tentar me soltar. Fecho os olhos e a primeira imagem que vem a mente é da lembrança, a qual um garoto desconhecido diz me amar.
Por que eu não me lembro de nada do meu passado? "Porque você foi vítima de um bombardeio, o qual atingiu sua cabeça, fazendo com que algumas memórias se perdessem para sempre.." Renderick disse quando eu o questionei. Mas se elas se perderam "para sempre", por que estão voltando agora e com tanta intensidade? Talvez eu não tenha as perdido no bombardeio. Talvez alguém tenha as tirado de mim. Mas por qual razão? O que minha memória poderia guardar de tão perigoso que foi preciso apaga-la da minha mente?
Meus devaneios são abruptamente cortados quando ouço um galho se partindo próximo a mim.
— Quem está ai? - Pergunto, tentando enxergar dentre a escuridão. Vejo uma silhueta sair de trás de uma árvore e caminhar em minha direção. — Quem é você? Por favor, diga alguma coisa. - Peço, a ponto de colapsar. Eu simplesmente não consigo mais lidar com nenhum sofrimento, seja físico ou mentalmente. Vejo a pessoa levantar a mão na altura dos lábios, sinalizando para que eu fique em silêncio.
Instantes depois, Ryan, o cúmplice de Tina, aparece do meu lado esquerdo trazendo algo em suas mãos.
— Falando sozinha, esquisita? - Ele diz com escárnio. Quando ele se aproxima vejo que carrega uma cumbuca cheia de algo que cheira a podridão. — Ah, isso? - Ele diz apontando para a vasilha quando percebe que estou olhando. — É pra você. Achamos que você estaria com fome. - Ele sorri e se abaixa na minha altura, aproximando-se perigosamente.
— Saia de perto de mim! - Eu grito, mas não tenho mais forças para lutar. Meu corpo está no ápice da dor. Ele gargalha ainda mais.
— Acho que você não está em posição de exigir nada. - Ele enfia a mão dentro da vasilha e retira um monte de tripas viscosas. — Não se preocupe, você deve ter comido coisas piores no planeta de onde você veio, aberração.
— Não! - Grito enquanto tento virar o rosto na tentativa de evitar que aquela coisa nojenta entrasse em contato com minha boca. — Fica longe de mim! Não! - Tento me debater, mas a corda me aperta enviando uma onda de choque por todo meu corpo. Numa última tentativa, consigo acertar um chute na vasilha que cai espalhando as tripas no chão. Enfurecido, ele agarra meu cabelo com uma mão e com a outra ele espalha aquelas entranhas no meu rosto. Eu choro de ódio e por me sentir impotente. Ele continua gargalhando, mas subitamente para.
Esforço-me a olhar para cima e entendo o que está acontecendo. Ryan está com os olhos petrificados enquanto alguém segura uma faca em seu pescoço. A pessoa chuta a parte de trás da perna dele, deixando-o de joelhos.
— Você se sente muito invencível aterrorizando mulheres desarmadas, não é? - As entranhas no meu rosto dificulta minha visão, mas a voz pertence a uma garota. — Vamos ver se você é tão feroz assim com uma mulher no controle. - Ela diz e o golpeia com um chute no meio das costas, fazendo com que ele caía de bruços no chão.
— Levanta! - Ela ordena, mas antes que ele possa fazer qualquer movimento, ela chuta seu estômago e ele grunhe de dor. — Está vendo como é fácil ser covarde? Está gostando de provar do próprio veneno? - Ela o vira de barriga para cima e coloca o joelho no pescoço dele, o sufocando. — Você é um covarde nojento e fracassado. - Ela pega um amontoado de entranha e enfia na boca dele. Ele tosse e se engasga. Fico aflita com o que pode acontecer em seguida.
— Para, por favor. - Eu suplico. — Não vale a pena. - Digo mais alto e só então ela se afasta do corpo quase desfalecido. Ele consegue se virar de lado e expelir o conteúdo viscoso para fora.
Atônita, ela demora alguns segundos para voltar a realidade. Vagarosamente ela se aproxima de mim e corta a corda que me prende a árvore e solta as amarras. Assim que minhas mãos são soltas eu tento limpar todo aquele líquido viscoso dos meus olhos e rosto. Sem conseguir conter a ânsia, ajoelho-me no chão e coloco tudo pra fora. Vomitar me faz sentir mais fraca do que já sou.
— Tudo bem? - A garota pergunta quando se aproxima. Com a visão focada consigo reparar as características da menina. Cabelos pretos medianos, pele branca com algumas cicatrizes e expressão preocupada. Não consigo falar nada, então assinto positivamente com a cabeça. — Consegue andar?
— Sim, só preciso de um minuto...- Murmuro exausta até mesmo para respirar.
— Ok, me avise quando estiver pronta. - Ela diz e se afasta. Respiro profundamente enquanto tento dissipar a ânsia de vômito. Decido pensar em algo bom para me acalmar, então lembro-me dos momentos ao lado de Sam. Das risadas, das palavras de apoio, da confiança dele em mim... Lembrar de seu rosto amigável faz minha respiração desacelerar aos poucos. A sensação de ter alguém que eu posso confiar é acalentadora.
Um pouco mais calma, tento ficar de pé, mas minhas pernas falham. Percebendo minha dificuldade, ela se aproxima e me ampara.
— Obrigada... - Digo, mas não sei o nome dela. Ela percebe que não se apresentou e sorri acanhada.
— Meu nome é Melina, trabalho no laboratório da base, então... Acho que você não me conhece. - Ela diz. Eu realmente não a conheço, mas lembro-me que eu a ouvi me defendendo no banheiro contra os comentários maldosos da Tina e as amigas dela. Decido guardar essa informação pra mim e apenas retribuo o sorriso.
— Bem, eu acho que nos conhecemos no momento perfeito. - Brinco e ela solta uma risada.
— Não poderia concordar mais. -Ela responde ainda rindo enquanto andamos para longe do corpo desacordado de Ryan.
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Resquícios
Ficção CientíficaExiste um momento certo de descobrir o que somos e porque somos? Quando você abriu os olhos e teve consciência de que estava viva? Eu lembro-me vagamente dos acontecimentos passados, como se fossem fragmentos unindo-se a medida que as memórias se...