A pequena criança quase não tinha força nas pernas. Avançava para a sala que habitava todos os seus pesadelos de forma trémula. Seu pai, que seguia logo atrás dele, o olhava com estranheza. Era suposto ele já se ter habituado aos rituais, pensou o homem ao sentir uma gota de desilusão a escorrer-lhe pelo rosto.
A negritude dos cabelos do garoto reluzia sob a luz forte do espaço, mas os seus olhos, perdidos algures no chão imenso que ainda tinha que percorrer, estavam escuros, toda a habitual luz se extinguira, quem sabe para sempre. A criança achava tão ou mais angustiante o longo caminho que sempre tinha que percorrer para fazer a vontade ao pai.
98... 99... 100..., entoava mentalmente o rapaz por cada novo passo que dava. Desde que aprendera a contar, que essa era a sua nova estratégia para conseguir se abstrair de tudo aquilo. Mesmo quando ultrapassava as portas duplas pesadas de frio e duro metal, contar números era a sua única escapatória possível. Não que dessa forma fosse capaz de escapar, realmente, aos rituais.
− 107 − pronunciou num murmúrio antes de estacar.
O pai da criança franziu as sobrancelhas e ponderou se se devia preocupar com a nova estranha obsessão do filho. Ultimamente, aquele número aparentemente insignificante saía sempre dos pequenos lábios do garoto antes de entrar na sala. O que o pai não sabia é que esse era o número exato de passos que antecediam os piores momentos da ainda curta vida da criança. Não importava o quanto as suas pernas se tornassem maiores, o número permanecia imutável. No entanto, o rapaz aprendera a não estranhar e aceitara-o como um facto. Ele sabia que por mais que ele tentasse, nada nunca mudava.
− Pai, tenho mesmo de entrar? – questionou com a voz embargada. Teria de tentar, pelo menos mais uma vez, fazer com que o homem mudasse de ideias. Quem sabe naquele dia o pai reconsiderasse todas as suas crenças. O que a criança sabia, e fingiu não se lembrar, é que essas crenças marcavam a cabeça de seu pai como a coroa apertada que usava em torno desta. – Ela não me vai querer assim – acrescentou o argumento que o assombrava há semanas.
− Não se preocupe – começou o homem, ao pousar gentilmente a mão sobre o ombro soluçante do garoto, – ela não tem de querer você. Ela será sua e você será dela. Esse é apenas um dos vossos deveres. Quando o destino vos juntar, nada poderá separar vocês.
Pai e filho não se olharam uma única vez e o peso da realidade das palavras do progenitor encurralou-os aos dois. Não havia contra-argumento possível e o garoto não teve outra hipótese senão acreditar no homem sábio que o guiava para a sala dos seus pesadelos.
Pela primeira vez em nove anos, não se ouviu nenhum grito de dor a escoar porta fora. O homem se sentiu orgulhoso de seu menino, que conseguira finalmente aprisionar todo o sofrimento dentro de si. E quando os dois saíram da sala de mãos dadas, os olhos azuis da pequena criança eram recebidos pela forte luz do corredor largo, que iluminava a triste nebulosidade do seu olhar.
Oi para todo o mundo que, de alguma forma, se sentiu impelido a dar aqui uma espreitadela à minha nova obra. Muito obrigada por dar uma chance a este meu novo desafio.
Para quem ainda não sabe, eu sou portuguesa, mas desta vez estou a tentar fazer um esforço para escrever de uma forma que seja mais acessível para a comunidade brasileira, que sei que é bem maior do que a comunidade portuguesa no wattpad. Me avisem se houver algo (uma palavra ou expressão) que vocês não entendam.
Se tiverem gostado deste prólogo, que, à primeira vista, pouco tem a ver com o clássico de "A Bela e a Fera" ("A Bela e o Monstro" para Portugal), deixem o vosso voto que me vai motivar muito a continuar.
Será que alguém conseguiu perceber o que tem este prólogo a ver com o clássico? Se sintam à vontade para deixar todas as vossas teorias aqui 😉
Como hoje é a estreia, tem capítulo duplo. Daqui a algumas horas vou postar o capítulo um.
Até ao próximo capítulo ❤
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A Bela Redoma
Science Fiction🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...