As faces de Liberty enrubesceram com o comentário desadequado do criado. Ela não poderia aguentar nem mais um segundo calada, não quando a ofendiam daquela maneira.
− Como se atreve, Lumière? – A garota levantou-se precipitadamente, fazendo a bebida quente, dentro da chávena ainda cheia do criado, verter um pouco sobre a pequena mesa da biblioteca. Algumas pingas aqueceram os dedos elegantemente esticados de Lumière. Ele pegava na chávena de uma forma impressionantemente aristocrática. Pessoas experientes na matéria, diriam que não obstante um certo exagero. − Eu não sou uma oferecida!
− Não é aquilo que eu penso – afirmou veementemente. – Estou claramente em personagem, caso não tenha reparado. – As suas longas pernas, voltadas na direção de Liberty, cruzaram-se elegantemente uma sobre a outra. O homem empertigou ainda mais os três dedos que não seguravam na pequena alça da chávena e bebericou subtilmente o conteúdo já morno. – Isto faz parte do treino.
− Como é que me ofender poderá fazer parte deste estúpido treinamento? – O criado recriminou, com um subtil trejeito da cabeça, o tom demasiado alto que a selecionada empregava para se dirigir a ele. Já para não falar da linguagem vulgar. − Pensava que a intenção era ensinar-me a comportar-me durante o "tea-time"?
Uma tradição que nem francesa era, exasperou-se ao ocupar de novo o seu lugar. A sua própria chávena tremeu na mesa, talvez ofendida com os seus pensamentos acusatórios. Ou talvez apenas tenha sido por o seu pé ter embatido numa das pernas da mesa, quando a moça caiu pesadamente sobre a cadeira.
− O chá foi apenas uma desculpa para treinar algo que precisa, visivelmente, de ser melhorado.
− E o que seria isso?
− A sua maneira intempestiva de ser. Diz o que quer e o que pensa. Às vezes, temos de engolir alguns sapos. − Ele tragou mais um pouco do líquido, mas dessa vez a infusão pareceu-lhe ainda mais azeda com a alusão aos animais viscosos que usara. Em vão, porque a jovem ao seu lado nem sequer reconheceu a expressão invulgar. – A instrução foi para se manter calada e sorridente, acenando ocasionalmente com a cabeça, apenas isso – repreendeu o criado, pousando a chávena sobre o pequeno prato redondo. Que bebida mais desenxabida, pensou de cara feia, seguindo por um instante o balancear nauseante do líquido lá dentro.
Não tinha sido atribuído a ele a responsabilidade de iniciar a jovem no comportamento feminino socialmente aceitável para uma futura princesa. Todos os seus trejeitos claramente exagerados deviam-se a anos de observação da conduta da rainha. Não estando em causa a sua capacidade de observador, a sua execução como imitador deixava muito a desejar. Essa tarefa árdua ficara nas mãos de Nicolette Armoire, que começaria as aulas com a jovem precisamente no dia seguinte. Lumière apenas tentaria passar uma parcela do seu carisma a Liberty, que, se absorvesse um décimo sequer, faria, certamente, um brilhareto.
− Não vejo como a província poderia beneficiar de uma boneca como rainha – comentou a selecionada ao lembrar-se do único brinquedo que tinham em casa. Anastasie ainda brincava com ela, mas anos antes esse mesmo objeto tinha entretido alguns dos tempos monótonos das irmãs mais velhas. A boneca limitava-se a sorrir, sorria sempre, nunca estava triste ou sequer pensativa. Não tinha vontade própria. A imagem da rainha Florianne não estaria certamente muito longe disso, mas ela recusava-se a ser assim.
− Uma rainha tem de ser um camaleão, moldar-se às diferentes situações sociais que lhe são exigidas. E, por vezes, ser, sim, uma boneca.
− Não achas que já chega de analogias com animas já extintos há mais de uma centena de anos? − A expressão facial da futura princesa contorceu-se em desagrado. − Isso não melhora em nada as coisas.
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A Bela Redoma
Ficção Científica🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...