Os raios da manhã tornavam ainda mais viçoso o verde que contornava a grande mansão onde vivia a família real. Noutros tempos, naquela mesma região do país, em pleno dezembro, esperar-se-ia encontrar um céu encoberto a ameaçar verter uma humidade enregelada sobre os simples mortais a deambular sobre a superfície da Terra. No entanto, há mais de um século que isso deixara de acontecer. Eram raras as vezes que chovia, sendo a água poluída do exterior purificada ao atravessar a proteção da redoma. E o microclima altamente controlado de Villeneuve impedia que os seus habitantes tivessem demasiado calor, ou demasiado frio.
Liberty caminhava descalça por entre a frescura da erva recentemente irrigada. A sua cabeça estava jogada para trás com a luminosidade do dia a incidir sobre as suas pálpebras cerradas. Os braços estendidos ao lado do corpo com as palmas abertas para o céu límpido daquela manhã. Uma tranquilidade inesperada invadia todo o seu ser e, por momentos, a rapariga conseguiu esquecer as inquietações do passado e o desespero de um futuro que já não lhe pertencia. Vivia o presente como se apenas ela existisse. Ela, o sol e a grama que lhe formigava os pés.
Elroy, de braços cruzados sobre o peito e de pés calçados, olhava Libby demoradamente enquanto avançava ao lado dela pelo jardim das traseiras. Os cabelos castanhos da jovem reluziam e baloiçavam subtilmente com a ténue brisa que se fazia sentir sob a redoma. E o rosto angelical voltado para o céu contagiava-o com uma paz a que se começava facilmente a habituar.
O passeio pelo jardim tinha sido ideia do príncipe que, desta vez, não o fizera para agradar a moça. Convidara-a a acompanhá-lo para que esta pudesse conhecer um pouco mais sobre ele. Aquela era a parte da mansão que mais o atraia desde pequeno. O único lugar aberto em que não se sentia sufocar. O único lugar que não o obrigava a encarar constantemente a vida que não escolhera para ser a sua. Ali, a natureza recebia-o sempre de braços abertos sem qualquer tipo de questionamento ou exigência. Claro que havia o grande muro que cercava o terreno a relembra-lo que tudo não passava de uma fantasia temporária. A recordá-lo que, eventualmente, ele sempre tinha de voltar para dentro.
− Porque é que você não tira os sapatos? – a voz de Liberty despertou Elroy, que perdido em pensamentos, fitava amargamente o muro distante.
− Não me parece apropriado – respondeu de forma esquiva, sem desviar o olhar da recordação das suas obrigações em forma de pedra. Quase nunca se deixava abalar por causa da grande muralha. Porquê agora?, recriminava-se mentalmente.
− Apropriado para quem? Não está ninguém aqui, para além de nós dois. – Os olhos do príncipe varreram o grande espaço à sua frente juntamente com os da jovem. − E não me parece que você vá infringir alguma regra, se o fizer – acrescentou ao fixar a sua atenção no pulso de Elroy. Apesar da pulseira estar oculta pelo tecido fino, ambos se recordaram da sua presença naquele momento. O príncipe agarrou no seu próprio pulso de forma constrangida. − Ou existe uma regra para isso? − Liberty questionou alarmada, movida por uma interpretação errónea do gesto do futuro monarca.
− Não, não existe uma regra para isso – Elroy respondeu ao sorrir.
O príncipe não se preocupou com a grama molhada quando se agachou para tirar um sapato de cada vez. Também não se apoquentou com a hipótese de alguém da mansão o ver com os pés descalços fincados sobre a terra húmida do jardim. Nada mais lhe passava pela cabeça naquele momento, se não a sensação de liberdade e leveza que a jovem o fazia sentir com uma facilidade impressionante. A maciez da terra e a verdura a roça-lhe suavemente a pele fizeram com que Elroy não só enxergasse o jardim, mas que o pudesse sentir plenamente pela primeira vez.
− Como é que você se sente? – perguntou Liberty ao ver o semblante do príncipe a transbordar de uma tranquilidade que não lhe era usual.
Elroy inspirou profundamente enquanto se perdia na vasta área verde à sua frente. Quando os seus olhos pousaram, por fim, nos da jovem ao seu lado, traziam consigo uma luminosidade refrescante.
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A Bela Redoma
Fantascienza🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...