Os primeiros raios da manhã entravam pela janela aberta e tocavam os pés descobertos de Liberty. O seu corpo cansado esmagava-se contra os lençóis bagunçados da cama, o ventre liso voltado para baixo.
A criada de quarto entrou, pé ante pé, ao deparar-se com a figura adormecida da bela moça. Os cabelos castanhos revoltos sobre o travesseiro e as cobertas a cair cada uma para um lado diferente da cama fizeram-na constatar que a noite tinha sido agitada. Lembrava-se de pensar o mesmo, naquela manhã, ao ver o príncipe praguejar para a colher que se havia dobrado com a sua força desmedida. Ele era irritadiço por natureza, mas Nicollete Armoire nunca o vira danificar a colher do desjejum. Por norma, o seu humor tendia a piorar com a passagem do dia e, de manhã, ele até poderia passar por um cordeirinho manso.
A mulher robusta começou então a preparar tudo para quando Libby acordasse. Dirigira-se, primeiro, ao armário, o seu canto preferido do quarto que preparara com tanta dedicação, e retirara de lá um vestido verde azulado com brilhantes a envolver o decote pronunciado. A maciez do material comprovava a qualidade da seda e o saiote, que caía em cascata, terminava numas belas pregas onduladas que lembravam a ondulação do mar. Colocou-o sobre os pés da cama, a flutuar sobre uns estonteantes sapatos negros de salto alto que repousavam no chão. De seguida, foi preparar o banho quente de sais naturais que devolveria o brilho de qualquer pele maltratada por uma noite mal dormida.
Ainda ensonada, Liberty levantou o rosto do travesseiro e esticou os braços à sua frente. A cabeça latejava-lhe por causa das poucas horas de sono.
− Que bom que já acordou, mademoiselle – disse madame Armoeire ao sair do banheiro privativo da futura princesa. A moça sentou-se num sobressalto, fazendo o colchão protestar com o seu repentino movimento. – Estou aqui para a ajudar, não para a atacar – proferiu numa voz relaxante que fez os ombros de Liberty voltarem ao seu lugar normal. – Isso é que foi uma noite agitada, ein? – comentou ao apanhar uma das cobertas do chão.
− Não foi propriamente das mais agradáveis – confessou com a memória demasiado vívida do corpo de Elroy. A imagem não lhe saíra da cabeça durante horas, impedindo-a de voltar a cair no sono que o príncipe havia interrompido.
− Seja lá o que for que a tenha perturbado, isso é coisa do passado – tentou reconfortar a mulher ao estender os seus anafados braços para Libby. A garota aceitou de bom grado a ajuda para se erguer da cama. – Olhe para esses olhos inchados! Não sei se vou conseguir disfarçar isso, mas vou dar o meu melhor.
Liberty seguiu a criada em silêncio, sem perceber o que a mulher quis dizer com aquilo. Sentiu a sua pele renovar-se debaixo da água quente ensaboada. Os seus músculos tensos relaxaram sob as mãos mágicas de madame Armoire. E a canção alegre que a empregada entoava tratou do músculo a que as suas mãos não chegavam, mas que estava tão ou mais contraído que os restantes: o seu coração.
A jovem nunca havia tomado banho sem ser num chuveiro, e, depois da morte da mãe, nunca ninguém lhe esfregara a sujidade do corpo. Ela achava estranho alguém a banhar, afinal de contas, já era uma adulta, mas não disse nada, porque aquela era a experiência mais relaxante que já tivera em toda a sua vida.
Ao entrar de novo no quarto, com uma toalha em volta do corpo, Liberty viu o vestido azul sobre a cama. Era impressionantemente esplendoroso, mas ela não se sentiria ela própria se tivesse de usar tecidos tão coloridos e refinados quanto aquele.
− Não o vou vestir – declarou sentando-se pesadamente sobre a cama.
− Mas, mademoiselle... − A criada olhava alternadamente para a jovem teimosa e o vestido que tanto trabalho lhe dera a coser.
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A Bela Redoma
Khoa học viễn tưởng🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...