26 horas antes
− Pode explicar-me como é que você foi a selecionada? – questionou Éliane ao pular do sofá.
O televisor atrás dela mostrava a imagem de Diane, a entrevistadora oficial da família real, a anunciar os detalhes para o dia seguinte.
− Eu estou tão chocada quanto tu – admitiu a irmã mais velha ao descobrir o rosto que amparava entre as mãos. – Isto só pode ser um equívoco.
− Um equívoco muito conveniente para você – disparou enraivecida. Os seus braços contorciam-se ao lado do corpo. – Você não passa de uma dissimulada! Você andou estes anos todos a tentar demover-me de fazer as provas para a seleção, alegando que a família real era uma cambada de corruptos interesseiros, e, afinal, só queria ver-me longe do seu caminho. Parabéns, parece que para além de mais bonita e inteligente que eu, você também é mais ardilosa!
− Mas eu não fiz as provas – murmurou em vão quando a irmã saiu disparada porta fora.
Anastasie agarrou-se à irmã mais velha numa tentativa de abraço, mas os seus membros fracos pararam a meio caminho e foram esmagados entre as costas da irmã e o seu próprio corpo. Liberty pegou na irmã ao colo, que se revelou mais pesada do que se lembrava, e deixou-se ficar com ela aninhada entre os seus braços.
Este era um daqueles dias em que a doença da irmã mais nova, atacava com força, quase parecendo adivinhar a desgraça que acabava de chegar àquela casa. O que seria de Anastasie, sem a sua irmã para tomar conta dela?
Desde que a mãe das meninas morrera no parto da mais nova, que Liberty assumira o papel que ficara completamente ao abandono. Com apenas oito anos de idade, teve de carregar com responsabilidades demasiado pesadas para os pequenos ombros de uma criança. Se ao menos o pai não tivesse decidido partir junto com a mãe. Ele não morrera, mas é como se tivesse morrido. Deixou o trabalho e começou a vaguear por Villeneuve, sem rumo ou propósito. Não falava com ninguém e às filhas dizia apenas o indispensável, se tivesse com disposição para isso. A casa só vinha para comer e dormir e, por vezes, nem isso.
Mas ela lá se aguentara, sabe-se lá Deus como. O diagnóstico da doença rara da irmã só foi feito um ano depois, quando Libby estranhou existirem dias em que Anastasie gatinhava e movimentava-se pela casa com fervor e outros em que mal conseguia suportar o peso da própria cabeça. Aparentemente, a mesma substância na atmosfera da redoma que mantinha os níveis de oxigénio e dióxido de carbono constantes, permitindo que todos os habitantes de Villeneuve tivessem uma vida saudável, era a mesma que colocava a vida de Anastasie em risco. A sua alergia não se manifestava todos os dias, nem da mesma forma. O quadro mais grave era quando a deixava num estado letárgico, sem força nos músculos, porque o coração poderia parar ou a própria saliva asfixia-la, já para não falar de possíveis quedas que lhe poderiam danificar o cérebro ou pior.
Naquele momento, entre os braços da irmã mais velha só não conseguia ter força o suficiente para lhe devolver o abraço ou dizer-lhe o quanto orgulhosa estava dela, por ter sido a escolhida de todo o reino.
No final daquele dia, já depois de ter deitado a irmã mais nova e sem tentar explicar-se de novo para a irmã que fazia questão de a ignorar, Liberty recostava pesadamente a cabeça latejante sobre o sofá da sala. Esperava, com todas as suas forças, que o pai resolvesse aparecer em casa.
As suas pálpebras pesadas teimavam em cair sobre os seus olhos exaustos, quando a porta da entrada se abriu, por fim. A moça levantou-se num salto e correu para receber o pai.
− O que você está a fazer em pé a estas horas? – a voz ríspida do pai informou-a de que aquele não era um bom dia para falar com ele. Contudo, algo no seu íntimo dizia que esta podia ser a única oportunidade que ela teria.
− Fui selecionada, pai.
O peso morto da declaração caiu entre o imenso espaço vazio entre os dois. O rosto do pai não denunciava a apreensão que lhe toldou o coração. E o silêncio foi a única resposta que este soube dar à filha.
− Você não vai dizer nada? – questionou indignada. – Essa foi das primeiras coisas que você me ensinou, a temer a família real e os seus atos injustos. E agora que eles me querem levar para o lado deles, você não vai dizer nada?
− Talvez seja o melhor.
− Talvez seja o melhor?! – a voz dela agigantou-se no ar. Depois lembrou-se das irmãs que dormiam no quarto ao lado e continuou num tom quase sussurrado, − E quem é que vai tomar conta de vocês? Quem é que vai tomar conta da Anastasie?
− A tua irmã Éliane, está claro. Ela é crescidinha o suficiente para isso.
− Não é uma questão de idade, pai, mas antes de mentalidade. A Éliane só quer saber dela própria.
− Vai ter que mudar.
− Ninguém muda assim tão de repente, da noite para o dia – argumentou convicta das suas palavras. A luz segura dos seus olhos ardentes extinguiu-se com a recordação da repentina mudança do homem de ombros caídos, que se limitava a estar de pé à sua frente.
− Você é inteligente, Liberty, − o homem encaminhava-se na direção da filha aterrada com o peso das responsabilidades, que sempre carregara nos ombros, a começar a ceder, − você vai ficar bem.
Gérard Beaumont estendeu a mão na direção da sua primogénita, mas algo no seu interior retorcido demoveu-o a tempo de ele cometer a loucura de consolar a filha com seu toque. Ele perdera o lugar de pai carinhoso há muito. Ele perdera o lugar de pai, ponto final.
Liberty foi então deixada sozinha naquela sala vazia e deprimente, sem outro remédio senão depositar todo o peso dos seus ombros na luz da lua que a ouvira durante toda a noite.
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A Bela Redoma
Ciencia Ficción🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...