Capítulo 23 - Regresso do passado

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A grande porta da mansão abriu-se sem a mínima resistência, alegre por voltar a receber a presença calorosa das duas pessoas que haviam sido destinadas a viver sob aquele teto, mesmo não havendo sangue real a correr nas suas veias.

Big Ben agarrava-se ao corpo de Liberty, tentando evitar sucumbir às gargalhadas profundas que faziam todos os seus músculos tremer. A jovem apoiou-se na porta totalmente aberta quando o mordomo tropeçou nos seus próprios pés.

− Cuidado – aconselhou a garota entre risos, segurando com mais força o homem que parecia não se aguentar em pé.

O criado se achava ébrio, mas não tinha uma única gota de álcool no sangue. A sua embriaguez explicava-se pela excitação de ver, pela primeira vez, os seus vastos conhecimentos reconhecidos por alguém. A futura princesa, de forma não intencional, afagara-lhe o ego em demasia e desde que saíram do aviário, Big Ben rira-se de qualquer coisa que via ou ouvia. Tudo para ele lhe parecia de súbito maravilhosamente engraçado.

Nunca a mansão havia testemunhado Big Ben trespassar a porta de entrada com tamanha felicidade. Nem mesmo nos seus dias de infância. Sim, porque aquele homem grande nem sempre foi adulto, nem sempre foi mordomo, mas sempre viveu naquela casa.

Big Ben, filho de Auguste De Lévesque, neto de Edmond De Lévesque, bisneto de Rose Montagne De Lévesque. Todos mordomos da família real, todos herdando a mesma posição, geração após geração. Desde que nascera que o seu destino havia sido selado. Como filho único fora instruído para realizar com mestria o seu papel como mordomo da enorme mansão. A sua infância passada entre lições de etiqueta, aulas de francês e gestão de recursos humanos e materiais. Algo bastante enfadonho para uma criança, não para Big Ben que rapidamente se adaptara à linguagem do mundo que diziam ser o dele. A sua escolha para ocupação dos tempos livres fora igualmente inusitada para uma criança de tenra idade. Assim que aprendera o suficiente sobre o alfabeto e como as letras soavam quando combinadas, começou a passar grande parte do seu tempo na biblioteca, interessado em qualquer livro que o informasse sobre os tempos antes da Redoma. Os seus prediletos eram aqueles que narravam os eventos históricos que marcaram a Europa e a sua memória prodigiosa ajudava-o a manter todos os pequenos detalhes que lera preservados na sua mente curiosa.

Foi nesses tempos que ele ganhou a alcunha, que acabaria por substituir por completo o seu nome de batismo. Ele fora uma criança anafada que corria de um lado para o outro com as faces redondas quase sempre escarlates e sempre trazendo consigo dois ou três relógios para ter a certeza que nunca chegava nem um segundo sequer atrasado às suas lições. Por muito que a leitura fosse a grande maioria das vezes absorvente, ele aprendera a valorizar a importância da pontualidade. E acrescendo a isso o seu gosto peculiar da altura por Inglaterra, chegando por vezes a roçar a obsessão, a sua alcunha não poderia ter sido outra que não Big Ben*.

Claro que nunca encontrara nenhum ouvinte verdadeiramente interessado nas suas mais recentes descobertas literárias. Os fatos, por mais fascinantes que lhe parecessem, sempre falhavam em captar a atenção das pessoas que o rodeavam. Eventualmente, acabara por desistir de os partilhar, mas nunca de procurar por eles.

Todavia agora, agarrado a ele estava uma jovem que ele confundia com esperança. Ela não só o ouvira como lhe fizera perguntas pertinentes. Ela não só o ouvira como sentira o coração do mordomo bater mais forte sempre que se entusiasmava com a narração de algum evento histórico. Ela não só o ouvira como o compreendera. E não deixava de ser, de algum modo, irónico que o nome dela fosse tão inglês quanto a alcunha do mordomo.

− É mesmo verdade que D. Isabel de Portugal mandou trancar a sua aia dentro de um baú? – questionou Liberty ao concentrar-se na última história que o mordomo lhe havia contado quando percorriam o jardim de volta à mansão.

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