Capítulo 9 - O homem egocêntrico

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2 dias e 2 horas antes

O rapazinho não parava quieto, correndo de um lado para o outro na casa. Liberty sentia-se a vilã da história ao andar atrás dele com a colher que lhe queria enfiar pela goela abaixo. Bom, não a colher, mas o seu conteúdo.

A criança de apenas três anos de idade foi apanhada por uns braços repletos de músculos que Libby reconheceu de imediato.

− Aqui está. – O homem estendeu-lhe a criança que se esperneava no ar. − Era disto que você precisava, não é mesmo?

− Gaston − só de lhe proferir o nome sentia as suas energias esgotarem-se. A corrida desenfreada pela casa também não ajudara. – O que você está aqui a fazer? Este é o meu trabalho – acrescentou ao pegar no rapaz ao colo, que se aquietou com o conforto dos braços de Liberty.

Aos dezasseis anos de idade, a jovem viu-se obrigada a escolher um trabalho de entre uma lista de lugares disponíveis, que não era propriamente extensa, muito menos apelativa. Acabou por escolher o mais óbvio, aquele que todos lhe garantiam ser o ideal para ela. Mas não poderia negar que lhe dava um certo jeito.

A creche ficava perto de casa e isso permitia-lhe ficar mais perto de Anastasie, em caso de emergência. Para além de que, sempre que a irmã mais nova acordava sem se conseguir movimentar como deve de ser, não ia à escola e Liberty levava-a consigo para o trabalho, tomando conta da irmã, juntamente com as outras crianças.

− Amanhã é a seleção, não poderia arriscar não ver você, pelo menos, mais uma última vez – confessou com o sorriso branco impecável que Liberty já não podia ver à frente.

Há duas semanas atrás, Gaston metera-se com ela na rua. Argumentara que não poderia viver sem conhecer a dona do rosto mais belo de toda Villeneuve, a seguir ao seu, claro. Libby, não querendo ser mal-educada, ouviu o que este tinha para lhe dizer, sem pouco ou nada proferir, enquanto fazia o habitual percurso a pé para o trabalho. O homem dissertara sobre as suas inúmeras qualidades, que na sua grande maioria, envolviam ele ser o ser mais belo existente à face da Terra. No dia seguinte, Gaston voltou a procura-la e dessa vez quis saber, aqui e ali, algumas informações sobre ela.

Com o passar do tempo, Liberty apercebera-se pelas suas perguntas intrusivas, que ele apenas queria avaliar sua adequação ao papel de futura esposa do grande e magnífico Gaston Côté. Não que ele alguma vez o tenha admitido em voz alta. No entanto, para a moça, ele não passava de um idiota autocentrado.

Ele tinha um certo charme, era engraçado e até, por vezes, dizia algumas coisas mais profundas como quando partilhou com Liberty as suas inquietações face à redoma, que, na sua opinião, só servia para afastá-los do verdadeiro "eu". Porém, a jovem não conseguia confiar nos seus olhos negros distantes, quanto mais sentir-se atraída por eles.

− Eu não vou ser escolhida, Gaston – informou-o, frustrada por não conseguir convencer a criança a abrir a boca.

O homem moreno e musculado apertou o pequeno pé da criança que abriu a boca escancarada em protesto. Liberty aproveitou para despejar a comida sem graça na abertura súbita.

− Não sei como você tem tanta certeza disso. Para mim, você é a única que pode vencer essa idiotice da seleção.

A rapariga não lhe poderia dizer o motivo da sua certeza. Apenas a sua família sabia que ela nunca completara nem uma única prova.

− Chamemos-lhe intuição feminina – respondeu ao libertar o rapaz choroso do seu colo.

O menino correu para se juntar às outras duas crianças que brincavam no tapete do centro da sala. E a jovem encaminhou-se para a cozinha onde as refeições eram transformadas numa papa e pousou a colher sobre a bancada.

– Mas o que é que você me quer dizer? – questionou Libby ao perceber a presença do homem atrás dela.

Gaston agarrou no braço da jovem e arrastou-a contra sua vontade para o quarto anexo à sala da cresce. Liberty protestara, mas o homem parecia irredutível.

− Aqui estamos mais à vontade – explicou ao fechar a porta atrás de si.

− Você enlouqueceu? – a raiva e estupefação invadiram simultaneamente os olhos castanhos daquela bela mulher. – As crianças não podem ficar sozinhas! Deixe-me passar, Gaston – gritou ao tentar escalar o homem que bloqueava a porta. Suas mãos começaram a embater de forma descontrolada no tronco largo do seu captor, que nem um milímetro cedera.

− Ouça-me apenas! – bramou afastando a mulher do seu corpo. Ela continuou a golpear o ar e isso pareceu-lhe deixar ainda mais inconformada.

− Eu não vou ouvir – declarou, investindo de novo sobre o seu tronco quando este a largou.

− Desculpe, eu tentei fazer isto a bem – admitiu Gaston antes de apertar um pano molhado contra a boca e nariz de Liberty.

Uns segundos depois, a mulher caiu inanimada nos seus braços fortes.

Uns segundos depois, a mulher caiu inanimada nos seus braços fortes

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Liberty acordou desnorteada, sem saber onde estava. Numa análise rápida ao quarto, percebeu que estava deitada numa das cinco pequenas camas existentes na creche para as sestas das crianças.

As crianças, lembrou-se alarmada ao levantar-se da cama num sobressalto.

− Elas estão bem – assegurou Gaston do outro lado do quarto. Sua presença marcante havia passado despercebida aos olhos confusos da garota. – Você ficou inconsciente durante mais tempo do que o que seria suposto. E os pais já vieram busca-las.

Claro que a jovem não conseguiu acreditar em suas palavras depois do que este ousara fazer-lhe.

Correu desesperada até à sala, procurando em todos os cantos possíveis e imagináveis.

− Eu estou a dizer a verdade, Liberty. – Gaston bramou de olhos fixos na mulher que se arrastava pelo chão em desespero. – Use a cabeça. Se eu as tivesse roubado, porque raio continuaria aqui?

− E porque é que você ficou? – questionou-o, ajoelhada no chão. Os olhos, rasos de água, erguidos para o homem que ela afinal não conhecia.

− Para garantir a você que não lhe fiz mal algum. Só queria olhar para você enquanto dormia.


− Quem é você? – O pânico viajara da voz até às feições da jovem. − Que tipo de obsessão doentia é essa?

− Eu não toquei em você – garantiu com a verdade a invadir-lhe o rosto quadrado. – Você saberia se eu o tivesse feito.

Liberty ergueu-se do chão ao recuperar o orgulho e a dignidade que nunca devia ter deixado escapar. A sua face refletia a desilusão que sentia, não com o homem, mas consigo mesma.

− Você desaparece daqui! – gritou com o braço esticado na direção da porta. – Eu nunca mais quero ver você.

Gaston colou o rosto ao chão e saiu da cresce com os ombros descaídos. Numa questão de minutos, parecera perder toda a sua arrogância e robusteza.

Libby sabia que ele dizia a verdade, que não a tocara, apenas a deitara sobre a cama. Mas isso não tornava a situação admissível ou até desculpável. Ele havia desrespeitado a sua vontade só para realizar um desejo macabro seu. E ela só conseguia sentir nojo de Gaston Côté.




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