A porta da casa estava totalmente aberta, permitindo vislumbrar o interior, mesmo antes de se entrar. Os quadros jogados no chão, alguns partidos na metade, outros completamente estilhaçados, fizeram Liberty sentir que não havia esperança. Aqueles homens, aqueles monstros, atacavam qualquer coisa que lhes aparecesse à frente. Estavam totalmente descontrolados e dificilmente alguma coisa ou alguém seria capaz de os travar.
Aos seus ouvidos chegavam gritos animados vindos do andar de cima. Ela podia sentir o embate de inúmeros pés contra o chão, como numa dança assíncrona e grosseira, intervalado pelo som de móveis a serem arrastados.
O cheiro acre do sangue irrompeu-lhe pelas narinas em reconhecimento de uma lembrança desagradavelmente recente. Junto às escadas, cinco guardas jaziam amontoados, sobre uma vasta mancha escarlate. E Liberty achou irónico que o longo e requintado tapete continuasse ali, imaculado, parando apenas a alguns centímetros da poça de cor vívida. Era como se o sangue tivesse temido marcar definitivamente aquela peça de arte, com dó de todas as outras que já tinham sido destruídas naquele espaço.
A imagem de Elroy embebido em sangue no chão do próprio quarto veio à mente da jovem. Tão vívida que a deixou atordoada por uns segundos. Mas não adiantava de nada sofrer em antecipação, quanto mais tempo ela demorasse, menos hipóteses haviam de encontrar o príncipe com vida.
Sem saber para onde se dirigir, ela apenas seguiu seus instintos. Avançaria até os sons da confusão que se alastravam pelo segundo andar da mansão. Porém, um ruído estridente, de vidro a ser quebrado, a fez estacar junto aos guardas mortos na base das escadas. Alguém estava lá em baixo junto com ela, provavelmente, na sala de estar, já que o barulho não parecia muito distante. E se o exército parecia todo concentrado lá em cima, quem teria ficado para trás?, o pensamento desafiou Liberty.
Contrariando toda a racionalidade, a jovem voltou atrás e se dirigiu para o corredor que dava acesso à sala de estar.
Vinte minutos antes
Elroy conseguiu ouvir os grunhidos e gritos do exterior a se aproximarem cada vez mais. A mansão estava a ser invadida e ele continuava deitado na cama, segurando contra o peito o livro em que ela havia tocado. O livro poderia ter sido o seu preferido antes dela entrar na sua vida, mas, naquele momento, as palavras de Antoine de Saint-Exupéry significavam tão mais.
O príncipe havia aprendido a amar e a ser amado apesar de qualquer ferida que lhe marcava o corpo e a alma. Havia conhecido a sua rosa, estimara-a e protegera-a, e ela dera-lhe tanto em troca, mesmo que ele não exigisse ou esperasse por tal coisa. Nas últimas semanas ele tinha conseguido viver verdadeiramente graças a ela. E foi por nutrir um sentimento tão profundo que vincava as suas raízes no seu coração dilacerado, por anos de tortura, que ele teve de a deixar ir.
Sentia-se derrotado, sem forças para se levantar daquela cama, ao saber que ela nunca mais leria para ele, que nunca mais partilhariam uma refeição, que nunca mais poderia ver o seu rosto de anjo ou tocar na sua pele de seda. Sentia que aquele poderia ser o seu fim. Ele já tinha tido a oportunidade de vida por que sempre ansiara. Poderia ter sido breve, mas valera cada pequeno segundo gasto. Qualquer segundo, dali em diante, seria apenas um vazio infinito que o magoaria como nada até então. Talvez fosse melhor mesmo deixar-se ficar ali, à espera.
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A Bela Redoma
Ciencia Ficción🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...