A carrinha velha, movida a eletricidade, chacoalhava no terreno baldio que dava acesso às fábricas. As pedras irregulares ofereciam resistência aos pneus, que se iam desgastando a cada novo obstáculo. Aquele veículo nada tinha a ver com o automóvel a serviço da família real. O carro negro, nem rodas tinha para se deteriorarem, flutuava junto ao solo, sem nunca chegar a tocar-lhe. Uma engenhoca moderna muito bem cuidada e preservada pelos donos que pouco uso lhe davam.
Gaston assobiava ao volante como sempre fazia. Ele era um dos motoristas que levavam os trabalhadores para as fábricas. Três carrinhas e três condutores para cento e vinte trabalhadores. Isso equivalia precisamente a cinco viagens, com 5000 metros de cada vez. Isso apenas no período da manhã. Ao final da tarde, os números dobravam. E durante um tempo e o outro, transportes de mercadoria poderiam ser necessários, fazendo com que tanto as carrinhas como os dois homens e a mulher que as guiavam tivessem de ficar de vigília. Ainda assim, era um emprego pouco exigente, que permitia o luxo de longas horas de reflexão.
O homem musculado espreitou para um dos espelhos retrovisores e conseguiu avistar o rosto redondo do amigo, quase colado ao volante de uma carrinha exatamente igual à que conduzia. LeFou sempre trazia o assento o mais para a frente possível, e, ainda assim, os pedais lhe pareciam de difícil alcance. Talvez aquela não fosse a profissão mais indicada para o comparsa de Gaston, mas era necessário reconhecer os esforços que este fazia para se encaixar ao lugar. O sentido literal dessa dedicação fez o homem que liderava o caminho gargalhar. Os passageiros, ainda mudos, franziram as sobrancelhas para a estranheza do comportamento do motorista. No entanto, Gaston nem reparou, tão pouco tomou consciência da bizarria de se rir sem motivo aparente.
Quando as gargalhadas cessaram, a melodia estridente do seu assobio voltou a preencher o silêncio incômodo. Se ele tivesse perguntado aos passageiros, que ainda estavam levemente ensonados, certamente estes lhe teriam informado da preferência pelo silêncio relaxante. Mas Gaston julgava saber o que era melhor para eles. De facto, as suas certezas eram mais fortes do que aqueles pneus que sulcavam a terra, e não necessariamente as mais fidedignas.
Os edifícios retangulares das três fábricas de Villeneuve lá estavam recostadas na extremidade da redoma mais afastada das aldeias. Era naquele local que as refeições, tecidos, materiais de construção e mobiliário eram produzidos. A dez metros dali um edifício mais baixo, onde a atividade de toda a redoma era monitorada, olhava-os de soslaio. Todos os produtos tinham de passar pelo Centro de Controle. E era também nesse espaço que se davam as provas para a seleção. Todos os registos armazenados, cuidados e analisados por uma equipa de verdadeiros especialistas.
Gaston guinou o veículo, numa paragem abruta que ele considerava necessária para produzir adrenalina suficiente para despertar os trabalhadores. Uma inspiração súbita que o domou naquele momento. Os passageiros não reconheceram a genialidade e generosidade que o levaram a fazer tal coisa. E apressaram-se a descer da carrinha, em meio de resmungos, fazendo promessas vãs de que nunca mais entrariam num carro conduzido por Côté.
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A Bela Redoma
Ciencia Ficción🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...