24 horas antes
Liberty fitava a janela aberta de sua casa, enquanto as irmãs devoravam o televisor com os olhos. Tentava ver se alguém passava à frente da sua habitação naquele dia tão incomum em Villeneuve. Porém, o único estímulo sensorial que recebia era a casa do outro lado da estrada que a desafiava a provar que não era para a sua própria residência que olhava. Fazia muitas vezes esse jogo, o de olhar para as inúmeras casas da vizinhança e tentar encontrar alguma disparidade. Perdia sempre. De qualquer forma, nunca fora muito boa em jogos.
− Você se importa de não babar para cima de mim, Anastasie – reclamou Éliane, ao afastar o rosto da irmã cassula que havia caído uns milímetros para o lado. Um fio de saliva ainda pendia na boca entreaberta da criança.
− Não ligue – disse Liberty ao ver a sua atenção puxada involuntariamente para o sofá onde se encontrava sentada. Com o pano que Anastasie detinha sobre o colo, Libby afastou-lhe a humidade recente do rosto redondo. – Ela acha que vai ser selecionada.
As duas irmãs riram cumplicemente, enquanto que a terceira ignorou o comentário sardónico e manteve os seus olhos vidrados no ecrã onde, finalmente, aparecera o príncipe.
− É ele – gritou entusiasmada, fazendo as suas irmãs se silenciarem eficazmente.
Anastasie calara-se pelo susto do som estridente da voz da irmã. Já Liberty estava curiosa para ver o príncipe pela primeira vez na vida. Éliane, mesmo sem nunca o ter visto antes, sonhava se casar com ele. Não pelo homem que era, mas pela vida que lhe poderia oferecer. Libby não a julgava, mas ela não era como a irmã. Nem que o príncipe fosse o mais belo de todos os homens de Villeneuve, ela se interessaria por ele.
Um rosto, de um formato praticamente retangular, abriu-se num sorriso contido consciente da câmara que o analisava. O lábio superior uma leve ondulação sobre uma meia lua bem preenchida. Curtos pelos negros coloriam a parte inferior da sua face da cor do mármore branco que pavimentava os passeios das ruas de Villeneuve. A ausência do sangue a aflorar a pele fez com que Libby se questionasse, por breves momentos, se o homem era sequer humano. Já para não falar do nariz perfeitamente esculpido que se desenhava nas proporções exatas. Os olhos refletiam o tom do céu levemente enublado daquele dia e as sobrancelhas, espessas e do mesmo tom da sua barba rasa, curvavam-se de forma imponente, talvez para os proteger na eventualidade de chuva. Os cabelos negros sedosos pareciam cortinas ao abrirem-se para uma testa larga e imaculada, e eram longos o suficiente para lhe cobrir parte das orelhas. Os fios do tom mais negro que Liberty já havia avistado, desciam de forma revolta apenas até à nuca.
− Príncipe Elroy, é para mim um imenso prazer entrevistá-lo pela primeira vez – ecoou uma voz feminina aveludada através do ecrã. A câmara voltou-se de forma relutante para um outro rosto, dessa vez de uma mulher de curtos cabelos louros, que dificilmente competiria com a beleza do primeiro. – Suponho que esteja tão entusiasmado quanto eu – a voz desabou num falsete nervoso no final da frase.
A câmara precipitou-se na direção do homem que parecia ainda cogitar a resposta.
− Duvido – a palavra curta entoada numa voz de barítono irrompeu do silêncio. Os olhos azuis mesclados num cinzento profundo ofuscaram brevemente.
A imagem do ecrã alargou-se pela primeira vez, permitindo o vislumbre dos dois sentados frente-a-frente com um painel branco como fundo. As diferenças entre eles se tornaram ainda mais salientes com a alteração do enquadramento. A mulher, com um vestido negro de mangas, justo até aos joelhos, afundou-se na pequena poltrona amarela que parecia perfeita para o seu tamanho, mas que apagara a vivacidade dos seus cabelos curtos. As pernas estavam entrecruzadas e as mãos morenas descansavam sobre o seu colo ligeiramente inquieto. Por seu turno, o homem, com um smoking do mesmo tom dos seus olhos, se mostrava ereto na poltrona encarnada e o seu tronco avolumado acompanhava, sem dificuldade, a altura exagerada das costas do assento. Fincado no chão, o sapato negro polido a refletir o quase ausente sol, e sobre a mesma perna o outro sapato descansava na sombra que cobria o seu corpo, quase por completo. Ambos os joelhos se dobravam num ângulo seguro de 90º, certamente premeditado. A perna do lado esquerdo perpendicular ao solo branco e a do lado direito paralela a este. Já os braços se esticavam ao longo do veludo vermelho que lhes servia de apoio, terminando num par de mãos fortes que fincavam a extremidade dos braços da poltrona.
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A Bela Redoma
Ciencia Ficción🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...