A grande cama já se habituara ao corpo delicado de Liberty, apesar dos poucos minutos de convivência. De braços abertos sobre a maciez do edredom que jazia sobre ela, parecia um anjo envolto de rosadas pétalas soltas, congeladas no branco do tecido. As paredes, estampadas com o mesmo motivo floral, davam um toque fresco e jovial ao quarto, que os dois homens diziam ser o dela. Logo ela, que estava habituada a dormir numa cama dura que partilhava com as suas duas irmãs. Não que ela alguma vez se houvesse queixado disso uma única vez, mas sabia bem receber o conforto da mais bela cama que alguma vez vira na vida.
− Viu? Eu disse que ela ia gostar – sussurrou Lumiére para o companheiro. Os dois olharam para ela sem saber muito bem o que dizer ou fazer, o que só poderia ser um verdadeiro milagre.
− Gostar? Eu adorei – confessou a garota ao sentar-se sobre a cama. Os seus olhos sorriam tanto quanto os seus lábios rosados. – Os quartos daqui são todos iguais a este? – questionou ao passar a mão sobre as cortinas transparentes que ladeavam a cama. Mais uma redoma, pensou um pouco desiludida com a inesperada falta de criatividade daquela gente. O quarto era belíssimo, mas aquele pormenor inquietava-a.
Os dois empregados desataram a rir das suas palavras ingénuas.
− Não, que disparate – respondeu Big Ben ao ver a expressão confusa da jovem. – Este quarto foi decorado especialmente para a receber.
− Por mim – cantou uma voz magnificamente afinada atrás dos dois homens. Uma mulher corpulenta de meia-idade acabava de entrar no quarto ainda de portas abertas. A sua pele parecia refletir a cor de avelã dos seus longos cabelos ondulados. – Foi uma correria para deixar tudo pronto a tempo, mas acho que é a sua cara – explicou num tom, que apesar de falado, ainda trazia algum resto de melodia consigo.
Libby pensou que seria difícil qualquer tipo de decoração naquele quarto não a impressionar, tendo em conta a sua vida modesta, mas resolveu guardar esse pensamento para si. Aquela mulher parecera ter-se dado a tanto trabalho por ela, que não queria deixá-la magoada.
− Obrigada. Está muito bonito.
− Espere até ver os vestidos que tenho para si – cantarolou satisfeita ao dirigir-se ao gigante armário de um tom rosado que preenchia uma parte de uma das paredes laterais.
A futura princesa olhou para as roupas que trazia vestidas.
Qual era o problema do seu macacão?, questionou-se.
− Esta é a madame Nicollete Armoire – apresentou Big Ben demorando o seu olhar nas curvas da mulher reclinada sobre o armário. A mulher parecia ter sido quase totalmente tragada pelo objeto, que era bem mais fundo do que aparentava à primeira vista. Apenas se viam as suas pernas e pouco mais. – Ela será a sua criada de quarto e estará responsável por a tornar apresentável todos os dias. – Lumière deu uma cotovelada ao companheiro, que se apressou a emendar, − Digo, responsável por lhe realçar a beleza natural.
− E poderá cantar-lhe todas as noites para ajudá-la a adormecer, se esse for o seu desejo, mademoiselle – acrescentou Lumière com uma vénia pomposa no final.
− Na verdade, não é – confessou cabisbaixa.
− Entendo na perfeição. Eu próprio acabo por me enjoar do dramatismo exagerado das suas canções – o homem delgado proferiu num tom sussurrado, com a mão esquerda a escudar-lhe a boca.
− Não, eu quis dizer ficar aqui. Não é meu desejo ficar na mansão.
A madame Armoire saiu disparada do profundo armário, que parecera cuspi-la. Os seus braços desajeitados deixaram cair um tecido vermelho cheio de folhos no chão.
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A Bela Redoma
Ficção Científica🏆 Obra vencedora do prêmio Wattys 2020 🏆 Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos da atmosfera contaminada...