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      O pensionato localizava-se em uma rua calma e arborizada da Vila Mariana. Com a proximidade do outono, as calçadas ficavam repletas de folhas vermelhas e amarelas, propiciando um colorido especial ao ambiente. Ester e Camila seguiam comentando das belezas locais e se esgueirando das áreas com pouca luminosidade.

Pelo adiantado da hora, a antiga casa de dois andares estava às escuras com apenas um belo lustre retrô da década de setenta iluminando a entrada. Sentado na varanda ao lado da porta de madeira maciça, estava o vigia, Antônio, um senhor na casa dos setenta anos que trabalhava para o casal de idosos, o Sr Frankie e Dona Matilde, donos do local desde a fundação há 20 anos. Antônio escutava as últimas notícias no pequeno rádio de pilha.

Camila, a mais falante das duas moças, entrou puxando assunto.

– Boa noite, sr Antonio. Está melhor do resfriado?

– Sim, dona Camila. O chá de limão com mel que a senhorita me deu ontem fez milagre. Estou novinho em folha.

– Fico feliz em saber. Mas vamos deixar a dona pra lá, é só Camila mesmo. A propósito esta é Ester a nova inquilina do pensionato que está fazendo direito na universidade do Largo São Francisco.

Ester, que acompanhava o diálogo em silêncio, estava admirada com o tratamento e educação de Camila destinado a um simples vigia, pois crescera acreditando que meninas ricas eram fúteis e esnobes. Antônio cumprimentou Ester com um largo sorriso que evidenciava a falta de alguns dentes e um meneio de cabeça. Ester respondeu com um gracejo e sentou-se ao lado de Camila que sem discrição alguma perguntava curiosa para o vigia:

– Sr Antônio, por que o pensionato se chama Clara Luz?

Depois de um longo silêncio, sr Antônio iniciava a narrativa em voz baixa da história do local.

– Clara era o nome da única filha do casal, e Luz foi uma homenagem a breve passagem da menina por essa vida.

– Como assim? – Camila indagava.

– A família já residia nessa casa quando a menina Clara nasceu. O sr Frankie contava que ela era uma criança alegre que corria por esse jardim subindo nas árvores, peralta mesmo, como diziam os mais antigos. Contudo, aos cinco anos, uma febre persistente com mais de 15 dias, que estava debilitando rapidamente a menina, assustou a família. Vários exames foram feitos chegando a um resultado ruim. Clara estava com câncer no sangue.

– Leucemia! – As moças falaram ao mesmo tempo.

– Essa doença mesmo. A família, mesmo arrasada, iniciara uma batalha dura pra vencer a doença no hospital A.C Camargo. E após dois anos ela estava curada. O tempo passou, Clara era uma menina estudiosa, sonhava se tornar enfermeira para poder cuidar de crianças com câncer. Porém, alguns dias antes do aniversário de quinze anos, a menina Clara desmaiara na escola. A família fora chamada as pressas e a menina levada para o hospital. Novos exames e a pior notícia se confirmara: a leucemia havia voltado, só que desta vez vencido a batalha, e Clara falecera em uma manhã de sol sem uma nuvem no céu. A família permanecera em luto durante muito tempo até o dia que dona Matilde tivera um sonho lindo com a filha e pela manhã, ao acordar, avisara ao marido que a casa seria transformada em um pensionato para moças, assim ela poderia cuidar de várias meninas durante algum tempo. O quarto de Clara fora transformado em biblioteca e sala de estudo, tem até um quadro com a foto da menina na estante. No início eram somente cinco quartos sendo que um deles dos donos e os outros das meninas. Cada quarto com dois beliches e um armário com quatro portas. Um dos cômodos fora transformado em sala de TV e a cozinha ampliada contendo duas geladeiras. Eu os conheci nesta época trabalhando na reforma, nos tornamos amigos e passei a vigia após a conclusão do curso para exercer a função, estando aqui desde então. O pensionato passou por outra reforma há três anos ganhando mais dois quartos e uma ampliação no banheiro podendo receber vinte e quatro meninas com conforto. E essa é a história do pensionato Clara Luz. – finalizava a narrativa.

– Que história triste! – dissera Camila

– História de sofrimento, dor e recomeço. – emendou Antônio

O relógio Bulgari Condotti de Camila marcava vinte e três horas, horário limite para a entrada das moças no pensionato, por essa razão se despediram do sr Antônio e seguiram para os seus respectivos quartos no andar superior. O de Camila no final do corredor, ao lado do banheiro, e o de Ester voltado para a rua o que trazia um certo desconforto para ela na hora de dormir, pois o poste de iluminação ficava em frente a janela que mesmo coberta por uma grossa cortina, uma réstia de luz a trespassava.

Ester adentrou o quarto o mais silenciosa que pôde para não acordar as outras três moças que dormiam profundamente, duas estudantes de psicologia, Paula e Janaína e uma de engenharia, Carina. Guardou os seus pertences, bolsa e livros no armário separando o necessário e indo direto para o banheiro. Mesmo suada, não tomou banho para não fazer barulho, fez a sua higiene e trocou de roupa colocando um pijama de mangas compridas rosa com uma coruja o decorando e calças listradas. Retornou para o quarto e subiu com cuidado a escada de madeira do beliche; a sua cama era a de cima e estava coberta por uma colcha de retalhos, um mimo feito por sua avó paterna que segundo ela era para trazer boas lembranças da casa. Fez a sua oração e dormiu quase imediatamente.

Nove Meses Para MatarOnde histórias criam vida. Descubra agora