A mão dele segurou a minha, para me deter, enquanto fazia a pergunta. Os seus dedos estavam congelados, como se, antes da aula, os tivesse colocado numa acumulação de neve. Não foi, porém, por este motivo que retirei a minha mão tão bruscamente. Quando ele me tocou, senti uma dor pungente na mão, como se um fluxo de corrente elétrica nos tivesse atravessado.
- "Desculpa" - Susurrou ele por entre os dentes, retirando imediatamente a mão.
No entanto, continuou a tentar alcançar o microscópio. Observei-o, ainda desconcentrada, enquanto ele examinava o diapositivo, o que fez num instante ainda mais breve do que eu fizera.
- "Prófase." - Concordou ele, registando a designação com uma caligrafia impecável no primeiro espaço da nossa ficha de trabalho. Substituiu agilmente o primeiro diapositivo pelo segundo e, em seguida, olhou-o rapidamente.
- "Anáfase" - Murmurou, anotando a denominação ao pronuncia-la.
Mantive um tom de indiferença na minha voz.
- "Posso?"
Ele esboçou um sorriso afetado e aproximou o microscópio de mim.
Olhei através da ocular de modo ansiosa, apenas para sofrer uma desilusão. Raios! Ele tinha razão.
- "Passamos ao terceiro diapositivo?"
Estendi a mão sem lhe dirigir o olhar. Entregou-mo, parecia estar a ser cauteloso de modo a não voltar a tocar a minha pele.
Olhei para o diapositivo da forma mais fugaz que consegui.
- "Intérfase."
Passei-lhe o microscópio antes de ele ter tido temp o para pedir. Deu um rápida espreitadela e, em seguida, apontou a designação. Eu tê-lo-ia feito enquanto ele olhava para o diapositivo, mas a sua caligrafia clara e elegante intimidava-me. Não queria estragar a página com as minhas toscas garatujas.
Terminamos antes do resto da turma estar perto de o fazer.
Conseguia ver Nick e seu parceiro a compararem dois diapositivos uma r outra vez e um outro grupo tinha o livro aberto debaixo da mesa.
Assim, fiquei sem nada para fazer, a não ser não tentar olhar para ele... sem sucesso. Olhei para cima e ele fitava-me, com aquele mesmo ar de frustação inexplicável refletido nos olhos.
Subitamente, identifiquei aquela diferença subtil no seu rosto.
- "Puseste lentes de contacto?" - Disse de forma abrupta e impensada.
Ele pareceu ficar perplexo com a minha pergunta inesperada.
- "Não"
- "Oh" - Balbucei - "Pensei que havia algo diferente nos teus olhos."
Ele encolheu os ombros e desviou o olhar.
Na verdade, eu tinha a certeza de que havia algo diferente.
Lembrava-me nitidamente da uniforme cor clara dos seus olhos da última vez que ele me lançara um olhar hostil. Neste dia, os olhos dele tinham uma cor complemente diferente, um estranho ocre, mais escuro. Não entendi, como tal poderia ser possível, a não ser que, algum motivo, ele estivesse a mentir a respeito das lentes de contacto.
Baixei o olhar. As suas mãos estavam novamente fechadas, com os punhos cerrados.
O professor Jorge veio, então, até à nossa mesa para ver porque motivo não estávamos a trabalhar. Olhou por cima dos nossos ombros para ver o trabalho concluído e, em seguida, examinou-o com maior atenção para conferir as respeitas.
- "Então, Justin, não achaste que deveria ser dada à Selena a oportunidade de usar o microscópio? - Perguntou o professor Jorge.
- "Á Sell" - Corregiu Justin automaticamente - "Na verdade, ela identificou três das cinco fases representadas nos diapositivos."
O professor Jorge olhava agora para mim, com uma expressão de ceptismo estampada no rosto.
- "Suponho que o fato de vocês os dois serem parceiros de laboratório seja proveitoso."
Balbuciou algo mais ao afastar-se. Depois de se ter ido embora, comecei novamente a rabiscar o meu caderno de apontamentos.
- "Foi pena aquilo da neve, não foi?" - Perguntou Justin.
Tinha a sensação de que ele estava a obrigar-se a estabelecer um diálogo de ocasião comigo. A paranóia invadia-me novamente. Era como se ele tivesse escutado a minha conversa com a Cristiana ao almoço e estivesse a tentar provar que eu estava errada.
- "Nem por isso" - Respondi de forma sincera, em vez de fingir ser normal como todas as restantes pessoas. Estava ainda a tentar afastar a estúpida sensação de suspeição e não conseguia concentrar-me.
- "O frio não te agrada." - Não era pergunta.
- "Nem o tempo chuvoso."
- "Deve ser difícil pra ti viver no inverno." - Devaneou.
- "Nem fazes ideia" - Murmurei por entre os dentes de modo enigmático.
Por algum motivo que eu não conseguia imaginar, ele parecia fascinado com aquilo que eu dizia. O seu rosto constituía uma tal fonte de distracção que eu tentava não olha-lo do que aquilo que a cortesia permitia.
- "Então porque é que vives cá?"
Está questão de algum modo parecia um pouco estúpida e sem sentido.
- "Porque os meus pais moram cá e trabalham cá." - Respondi como se fosse óbvio.
Após um longo momento de silêncio, cometi o erro de o fitar diretamente nos olhos. Os seus olhos baralharam-me e respondi sem pensar.
- "Na verdade, não sei porque os meus pais estão juntos até hoje. A minha mãe vive praticamente só do trabalho, nem tempo tem para ter uma família." - Desabafei.
A minha voz parecia triste, mesmo aos meus próprios ouvidos.
- " Todos temos que nos sujeitar a algo" - Disse Justin, ainda com um tom de voz gentil.
Não conseguia determinar o motivo do seu interesse, mas ele continuava a fitar-me com um olhar penetrante, como se a entediante história da minha vida tivesse, de algum modo, uma importância vital.
- "Bem, é como diz o ditado 'A vida não é justa' "
- "Creio já ter ouvido isso algures" - Assentiu secamente.
- "Então, é tudo" - Insiti, perguntando-me porque motivo que ele continuava a fitar-me daquela maneira.
O seu olhar fixo tornou-se analítico.
- "Disfarças bem" - Disse lentamente - "Mas estaria disposto a apostar que estás a sofrer mais do que demonstras a todos."
Fiz-lheum esgar, resistindo ao impulso de mostrar a língua como uma criança de cinco anos, e desviei o olhar.
- "Estou enganado?"
Tentei ignora-lo.
- "Bem me pareceu que não." - Murmurou presunçosamente.
- "Porque é que isso te interessa?" - Perguntei, irritada.
Mantive os olhos afastados, observando o professor enquanto este fazia rondas.
- "Está é uma excelente pergunta." - Susurrou por entre os dentes, num tom de voz tão abafado que me interroguei se ele não estaria a falar consigo mesmo. No entanto, após alguns instantes de silêncio, conclui que está seria a única resposta que eu iria obter.
Suspirei, olhando com o sobrolho carregado para o quadro.
- "Estou a aborrecer-te?" - Perguntou ele com um ar divertido.
Olhei-o de relance sem pensar... e voltei a dizer a verdade.
- "Não propriamente. Estou mais aborrecida comigo mesma. Sou tão transparente... A minha mãe chama-me sempre o seu livro aberto." - Respondi franzindo o sobrolho.
- "Pelo contrário, considero-te muito opaca."
Apesar de tudo o que eu dissera e ele supesera, parecia estar a falar a sério.
- "Então, deves ser um bom avaliador de caráter." - Retorqui.
- "Normalmente."
Esboçou um sorriso rasgado, exibindo uma dentadura perfeita e extremamente branca.Continua...
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Luz E Escuridão
Romance"Nunca refletia longamente sobre a forma como morreria, ainda que, ao longo dos meses anteriores, tivesse tido de sobra para tal, mas mesmo que o tivesse feito, jamais teria imaginado que seria assim. Olhei fixamente para o lado oposto da longa sal...