- Estás bem?
- Nem por isso.
Aguardei, mas ele não voltou a falar. Encostou a cabeça ao banco, olhando o trajeto. O seu rosto estava austero.
- O que é que se passa? - as minhas palavras saíram sussurradas.
- Por vezes, tenho problemas com o meu temperamento, Sell - também ele sussurrava e, enquanto olhava pelo vidro, os seus olhos semicerraram-se, transformando-se em meras frechas - Mas não adiantaria de nada se eu desse meia volta e perseguisse aqueles... - não terminou a frase, desviando o olhar, esforçando-se, por um momento, por controlar novamente a sua raiva - Pelo menos - continuou - É disso que tento convencer-me.
- Ah! - tal interjeição parecia inadequada, mas não me ocorreu uma resposta melhor.
Ficamos novamente sentados em silêncio. Olhei para o relógio que se encontrava no tablier. Já passava das 16h30 da tarde.
- A Cristiana e a Ana vão ficar preocupadas - murmurei - Devia ir encontrar-me com elas.
Ligou o motor sem voltar a proferir uma única palavra, procedendo a uma suave inversão de marcha acelerando de novo em direção à cidade. Num ápice, tínhamos chegado. Estacionou paralelamente aos restantes veículos, junto da borda do passeio, num lugar que eu considerava demasiado pequeno pra o volvo mas ele ocupou-o sem mínimo esforço à primeira tentativa.
Olhei pelo vidro e vi as luzes de Lá Bella Itália, assim como Cris e Ana a irem-se embora, distanciando-se ansiosamente de nós.
- Como é que sabes onde...? - principiei, mas, depois, limitei-me a abanar a cabeça.
Ouvi a porta abrir-se e virei-me, vendo-o a sair.
- O que estás a fazer?! - interroguei.
- Vou levar-te a jantar.
Esboçou um sorriso, mas tinha os olhos duros. Saiu do carro e bateu com a porta. Tentei desajeitadamente liberar-me do cinto de segurança e, em seguida, apressei-me também a sair do carro. Ele esperava-me no passeio.
Falou antes de eu ter tido oportunidade de o fazer.
- Vai atrás da Cristiana e da Ana antes que eu tenha também de seguir no seu encalço. Acho que não conseguiria refrear-me se desse outra vez de caras com aqueles teus amigos.
Tremi perante o tom de ameaça patente na sua voz.
- Cris! Ana! - gritei, seguindo atrás delas e acenando-lhes quando olharam.
- Onde estiveste?! - a voz de Cristiana transmitia desconfiança.
- Perdi-me - confessei timidamente - E depois, encontrei-me com o Justin por acaso.
Fiz gesto na direção dele.
- Não de importam que vos faça companhia? - perguntou com a sua voz suave e irresistível.
Pelo ar espatando de ambas, percebi que ele nunca antes usara os seus encantos com elas.
- Aah... claro que não - afirmou Cristiana suavemente.
- Hum, na verdade, Sell, nós já comemos enquanto estávamos à espera, desculpa - confessou Ana.
- Tudo bem, não tenho fome - disse encolhendo os ombros.
- Julgo que devias comer alguma coisa - disse Justin em voz baixa, mas com muita autoridade. Olhou para Cristiana e falou com um tom de voz ligeiramente elevado - Importas-te que eu leve a Sell a casa está noite? Deste modo, não terão de esperar enquanto ela come.
- Hum, suponho que não há problema...
Ela mordeu o lábio, tentando perceber, através da minha expressão facial, se era aquilo que eu queria. Pesquei-lhe o olho. Nada mais queria senão estar a sós com o meu eterno salvador.
Havia imensas perguntas com que só podia bombardea-lo quando estivéssemos sozinhos.
- Está bem! - disse Ana mais rápida que Cristiana - Até amanhã Sell... Justin.
Pegou na mão de Cristiana e puxou-a na direção do carro, que eu conseguiria avistar a uma curta distância, estacionado do outro lado. Ao entrarem, Cris voltou-se e acenou, com o rosto a transparecer uma curiosidade àvida. Retribui-lhe o aceno, esperando que elas se afastassem antes de me virar de frente pra ele.
- A sério, não tenho fome - insisti, erguendo o olhar para lhe olhar no rosto. A sua expressão facial era indecifrável.
- Faz-me a vontade.
Dirigiu-se para a porta do restaurante e manteve-a aberta com um ar de obstinação. Obviamente, não haveria mais discussões. Passei por ele, entrando no restaurante, com um suspiro de resignação.
O restaurante não estava muito cheio.
Quem recebia os clientes era uma mulher e eu percebi o seu olhar enquanto examinava Justin. Recebeu-o de uma forma calorosa, mais do que necessário. Fiquei espantada com o modo como tal me incomodava. Ela era vários centímetros mais alta do que eu e artificialmente loira.
- Tem uma mesa para dois?
A voz dele era sedutora, quer fosse essa a sua intenção ou não. Vi o olhar dela inclinar-se para mim e depois, desviar-se, tendo ficado satisfeita com a minha óbvia vulgaridade e com a cautelosa distância que Justin mantinha entre nós. Conduziu-nos até uma mesa suficientemente grande para acomodar quarto pessoas, no centro da zona mais apinhada da sala de jantar.
Estava prestes a sentar-me, mas Justin acabou a cabeça.
- Talvez num local um pouco mais íntimo? - insistiu tranquilamente.
Não tinha a certeza, mas parecia que ele lhe dera uma gorjeta de forma subtil. Nunca vira ninguém recusar uma mesa, a não ser nos filmes antigos.
- Com certeza - disse ela, tão surpreendida como eu. Conduziu-nos, passando por uma divisória, até um pequeno recinto com cabinas, todas elas vazias - O que lhe parece?
- Perfeito.
Ele exibiu um sorriso, deslumbrando-a por momentos.
- Hum! - exclamou ela, abanando a cabeça - A emprega que irá servir-vos não demorará.
Afastou-se com um passo pouco firme.
- Não devias mesmo fazer isso as pessoas - critiquei - Não é muito justo.
- Fazer o quê?
- Deslumbrá-las dessa forma, neste preciso momento, ela deve estar na cozinha a respirar de forma ofegante.
Ele parecia confuso.
- Oh, vá lá - disse com hesitação - Tu deves ter noção do efeito que exerces nas pessoas.
Inclinou a cabeça para um dos lados e os seus olhos expressaram curiosidade.
- Eu deslumbro pessoas?
- Ainda não reparaste? Julgas que todos conseguem alcançar o que pretendem com tanta facilidade?
Ignorou as minhas perguntas.
- E a ti, deslumbro-te?
- Frequentemente - confessei.Continua...
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Luz E Escuridão
Romance"Nunca refletia longamente sobre a forma como morreria, ainda que, ao longo dos meses anteriores, tivesse tido de sobra para tal, mas mesmo que o tivesse feito, jamais teria imaginado que seria assim. Olhei fixamente para o lado oposto da longa sal...