Tem cuidado

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O professor Jorge restabeleceu, então, a ordem na sala e eu virei-me para prestar atenção. Não queria acreditar que acabara de expor a minha vida monótona aquele bizarro e lindo rapaz que devia, ou não, desprezar-me. Parecia absorto a nossa conversa, mas, agora, eu conseguia ver, pelo canto do olho, que ele estava novamente a afastar-se de mim, com as mãos a segurarem na borda da mesa como inequívoca tensão.
Tentei parecer atenta enquanto professor Jorge ilustrava, com acetatos no retroprojetor, aquilo que eu observara, sem dificuldade, através do microscópio. Os meus pensamentos, porém, estavam ingovernáveis.
Quando o toque da campainha finalmente soou, Justin apressou-se a sair da sala de forma tão ágil e graciosa como fizera na segunda-feira anterior e, tal como nesse mesmo dia, fixei, com assombro, o olhar na direção em que ele seguira.
Nick avançou rapidamente para junto de mim e pegou nos meus livros. Imaginei-o com uma cauda a agitar-se.
- "Foi horrível." - Lamentou-se - "Todas pareciam exatamente iguais. Tiveste sorte em ter o Bieber como parceiro."
- "Não tive quaisquer dificuldades em identifica-las." - Arfimei, ofendida com a sua pressuposição, arrependendo-me imediatamente da reprimenda.
- "Hoje o Bieber parecia bastante simpático." - Comentou ele enquanto veríamos os nossos casacos.
Não pareceu satisfeito com aquele facto.
Tentei mostra-me indiferente.
- "Pergunto-me o que ele teria na passada segunda-feira."
Não conseguia concentrar-me na conversa de Nick enquanto caminhávamos para o ginásio e a aula de educação física também não me cativava muito a minha atenção. Hoje Nick fazia parte da minha equipa. De forma cavalheiresca, ocupou a minha posição e também a dele, pelo que a minha vez de servir, a minha equipa desviava-se prudentemente sempre que tal acontecia.
Quando me dirigi até aos autocarros, a chuva não passava de neblina, mas senti-me mais confortável quando entrei dentro do autocarro. Assim com o aquecimento já ligado, ligando assim em seguida a música do meu telemóvel ouvindo o som através dos meus fones.
Através da janela, reparei na figura branca e imóvel. Justin Bieber estava encostado à porta diante do volvo, a uns três carros distantes do autocarro, e a olhar atentamente na minha direcção. Desviei rapidamente o olhar começando então o autocarro em andamento.
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Quando abri os olhos, de manhã, algo estava diferente.
Era a claridade. Caracterizava-se ainda pela tonalidade verdeacinzentada de um dia nublado na floresta, mas, de alguma forma, estava mais luminosa. Apercebi-me de que não havia nevoeiro a velar a minha janela.
Levantei-me de um salto para olhar para o exterior e, então, soltei um gemido de horror.
Uma fina camada de neve cobria o Jardim. Porém, isto não era o pior. Toda a chuva que caira no dia anterior gelara e solidificara, revestindo as agulhas das árvores de configurações deslumbrantes e fantásticas e fazendo da estrada uma mortífera superfície gelada. Já tinha bastante dificuldade em manter-me de pé quando o piso está seco, talvez fosse mais seguro para mim voltar pra cama.
O meu pai já saira para o trabalho, juntamente com a minha mãe, antes de eu descer. Sob muitos aspectos, dei por mim a deliciar-me com a solidão, em vez de me sentir só.
Tomei apressadamente uma taça de cereais e um pouco de sumo de laranja diretamente do pacote. Sentia-me animada por ir para a escola e isso assustava-me. Sabia que não era pelo estimulante ambiente de aprendizagem que eu esperava ansiosamente, nem por ver o meu novo grupo de amigos. Se quisesse ser honesta comigo mesma, tinha consciência de que estava impaciente por chegar à escola porque iria encontrar Justin Bieber, o que era uma grande, grande idiotice.
Devia tentar evita-lo por completo. Além disso, tinha as minhas desconfianças em relação a ele, porque haveria de mentir a respeito dos seus olhos? Estava ainda mais assustada com a hostilidade que, por vezes, sentia emanar dele e ficava ainda sem palavras sempre que visualizava o seu rosto perfeito.  Estava absolutamente ciente de que o meu mundo e o mundo dele eram pólos que não se tocavam. Logo, eu não deveria, de momento algum, estar ansiosa por vê-lo neste dia.
Foi necessária toda a minha concentração para caminhar lentamente e conseguir chegar bem e viva até a paragem dos autocarros.
Este dia seria manifestamente um pesadelo.
Pela viagem até à escola, o meu medo de cair e as minhas indesejadas especulações acerca de Justin Bieber afastaram-se do meu espírito, ao pensar em Nick e Shawn e na óbvia diferença da forma como os rapazes adolescentes reagiam à minha pessoa nesta cidade. Tinha a certeza de que a minha aparência era exatamente a mesma que tinha na escola anterior. Era natural que isso estivesse relacionado com o fato de os rapazes da minha escola anterior tivessem assistido à minha lenta passagem por todas as estranhas fases da adolescência e ainda fizessem esta ideia de mim. Talvez está realidade se devesse ao facto de eu ser a novata da escola, onde as novidades eram poucas e sugeriam muito de longe a longe. Possivelmente, a minha incapacitante falta de jeito era encarada como sendo enternecedora em vez de apuros. Qualquer que fosse a razão, o comportamento típico de um cachorrinho que Nick assumia e a aparente rivalidade que existia entre ele e Shwan eram desconcertantes. Não sabia ao certo se não preferia ser ignorada.
Quando sai do autocarro, na escola, vi por um motivo tivera tão escassas dificuldades. Encontrava-me a caminhar pra dentro da escola, quando ouvi um ruído estranho.
Tratava-se de um guincho estridente e estava depressa a tornar-se dolorosamente sonoro. Ergui o olhar, sobressaltada.
Vi várias coisas em simultâneo. Nada se movia em câmara lenta, como acontece nos filmes. Em vez disso, o afluxo de adrenalina parecia fazer com que a atividade do meu cérebro acelarasse significamente e eu fui capaz de assimilar, com grande pormenor, várias coisas ao mesmo tempo.
Justin Bieber encontrava-se a quatro automóveis de distância de mim, olhando-me fixamente com um ar horrorizado. O seu rosto sobressaía num mar de rostos, estando todos paralisados com a mesma máscara de choque. No entanto, o factor de importância mais imediata era a carrinha azul escura que derrapava, com os pneus bloqueados e a chiarem no gelo do parque de estacionamento. Ia embater na traseira do carro que estava a uns 3 metros de mim. Não tive tempo sequer de fechar os olhos.
Precisamente antes de ouvir o esmagador estrépito da carrinha a embater contra o carro, moldando-se a ela, algo me atingiu, com violência, mas não vindo da direção que eu esperava. A minha cabeça bateu no alcatrão gelado e senti algo sólido e frio a prender-me ao chão. Estava estendida no passeio por trás do automóvel castanho-ameralado ao lado do qual estacionaria, mas não tive oportunidade de reparar em mais nada, pois a carrinha continuava a avançar na minha direção. Enfaixara-se com um ruído irritante na traseira do carro e, ainda rodopiando e patinando, estava prestes a colidir novamente comigo.
Uma imprecação proferida em voz baixa fez-me perceber que estava alguém comigo e era impossível não reconhecer aquela voz. Duas mãos longas e brancas precipitaram-se de forma protetora à minha frente e a carrinha estremeceu até parar a trinta centímetros da minha cara, com as grandes mãos a encaixarem-se providencialmente numa mossa profunda da parte lateral da correçaria da carrinha.
Então, as mãos dele moveram-se tão rapidamente que se desfocaram.  Uma estava subitamente a agarrar a parte inferior da carroçaria da carrinha e algo me arrastava, sacudindo as minhas pernas como se das de uma boneca de trapos se tratasse, até que estás bateram no pneu do pneu da carrinha.
Um áspero baque metálico feriu-me os tímpanos e a carrinha ficou imobilizada, com vidro a saltar sobre o asfalto, exatamente onde, há um instante, estavam as minhas pernas.
Durante um longo momento, fez-se absoluto silêncio, até que os gritos começaram. Na abrupta confusão, conseguia ouvir mais do que uma pessoa a gritar o meu nome, mas, mais distintamente do que todos os clamores, conseguia escutar a voz grave de Justin Bieber ao meu ouvido.
- "Sell? Estás bem?"
- "Estou ótima."
A minha voz soava-me estranha. Tentei sentar-me e apercebi-me de que ele me apertava contra a parte lateral do seu corpo com uma força férrea.
- "Tem cuidado" - Advertiu-me enquanto eu me debatia - "Acho que bateste com a cabeça com bastante violência."
Apercebi-me de uma dor latejante localizada acima da orelha esquerda.

Continua...

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