Senti um acesso de medo ao escutar as suas palavras e recordei bruscamente o olhar furioso que ele me lançou naquele dia... Mas a avassaladora sensação de segurança que eu sentia na sua presença aquietou-me. Quando ergueu o olhar para decifrar o meu, não havia nele qualquer vestígio de medo.
- Lembras-te? - perguntou, com o seu semblante solene de anjo.
- Lembro - estava calma.
- E, no entanto, aqui estás tu sentada.
Havia um laivo de incredulidade na sua voz, levantou uma sobrancelha.
- Sim, estou aqui sentada... por tua causa - detive-me - Porque, de alguma forma, tu sabias como encontrar-me hoje... - incitei-o a explicar.
Ele apertou os lábios, fitando-me com os olhos semicerrados, tomando uma nova decisão. O seu olhar incidiu subitamente sobre o meu prato e, em seguida, sobre mim.
- Tu comes e eu falo - negociou.
Peguei rapidamente noutra garfada de ravióli e levei-a à boca, mastigando com pressa.
- É mais difícil do que deveria ser, localizar-te. Normalmente, consigo encontrar uma pessoa com muita facilidade quando já auscultei a sua mente antes.
Ele olhou-me com ansiedade e apercebi-me de que paralisei. Obriguei-me a mim mesma a engolir e, em seguida, espetei outro pedaço de ravióli e abocanhei-o.
- Andava a vigiar a Cristiana, sem grandes cuidados, como já referi, só tu poderias arranjar sarilhos em Port Angels, e, a princípio, não reparei que partiras sozinha. Então, quando me apercebi de que já não estavas com elas, fui à tua procura à livraria que eu vira na cabeça dela. Percebi que não tinhas entrado e de deslocavas para Sul... e sabia que terias de voltar para trás em breve. Assim, estava apenas à tua espera, perscrutando aleatoriamente os pensamentos das pessoas que passavam na rua, para ver se alguém reparou em ti, de modo a poder saber onde estavas. Não tinha motivos para estar preocupado... Mas estava estranhamente ansioso...
Estava perdido nos seus pensamentos, fixando o olhar além de mim, vendo coisas que eu não poderia imaginar.
- Comecei andar às voltas, ainda... à escuta. O sol estava finalmente a pôr-se e eu prestes a sair do carro e a seguir-te a pé. Então... - ele parou, cerrando os dentes numa fúria repentina.
Esforçou-se por se acalmar.
- Então o quê? - sussurrei.
Ele continuou a olhar fixamente por cima da minha cabeça.
- Ouvi o que eles estavam a pensar - resmungou, com o seu lábio superior a retrair-se ligeiramente por cima dos dentes - Vi o teu rosto na mente dele.
Subitamente, inclinou-se pra frente, com o cotovelo a sugerir sobre a mesa e a mão a tapar-lhe os olhos. O movimento foi tão ágil que me assustou.
- Foi muito... difícil para mim... não imaginas o quanto... simplesmente levar-te dali e deixá-los... vivos - a sua voz era abafada pelo braço - Podia ter-te deixado ir com a Cristiana e a Ana, mas receava que, se me deixasses sozinho, eu fosse à procura deles - confessou num sussurro.
Eu permanecia silenciosamente sentada, aturdida, com as ideias a surgirem-me incoerentemente. As minhas mãos estavam unidas no meu colo e eu encostava-me sem energia as costas do assento. Ele ainda segurava o rosto com a mão e estava imóvel como se tivesse sido esculpido na pedra à qual se assemelhava a sua pele.
Finalmente, ergueu o olhar, com os seus olhos a procurarem os meus, pejados das suas próprias perguntas.
- Estás pronta para ir pra casa? - interrogou.
- Estou pronta pra ir embora - reformulei, execessivamente grata por ainda poderemos desfrutar juntos, da hora que demorava a viagem até casa. Não estava preparada para me despedir dele.
A empregada de mesa apareceu como se tivesse sido chamada ou estivesse a observar-nos.
- Está tudo bem? - perguntou ela a Justin.
- Já pode trazer-nos a conta, obrigado.
A voz dele estava serena, mais ríspida, refletindo ainda a tensão da nossa conversa. Tal facto pareceu perturbar o espírito da empregada. Ele levantou o olhar, esperando.
- C... com certeza - tartamudeou ela - Aqui tem.
Retirou uma pequena pasta de pele do bolso da frente do avental preto e entregou-lha.
Ele já tinha a nota na mão. Colocou-a no interior da pasta e devolveu-lha.
- Não é necessário dar-me o troco.
Sorriu. Levantou-se e eu pus-me de pé de forma desajeitada.
Ela sorriu-lhe novamente de modo convidativo.
- Tenha uma boa noite.
Ele não desviou sequer o olhar de mim enquanto lhe agradecia. Eu reprimi um sorriso.
Caminhou muito próximo a mim enquanto nos dirigiamos para a porta, tendo ainda o cuidado de não me tocar. Lembrei-me do que a Cristiana disse a respeito da sua relação com o Nick, de como estavam quase a chegar à fase do beijo. Suspirei. Justin pareceu ouvir-me e baixou curiosamente o olhar. Olhei para o passeio, grata pelo facto de, aparentemente, ele não ser capaz de advinhar os meus pensamentos.
Abriu a porta do lado do passageiro, segurando-a enquanto eu entrava e fechando-a suavemente quando eu já me encontrava no interior do automóvel. Observei-o enquanto ele contornou a frente do carro, espantada, uma vez mais, com a sua graciosidade. Provavelmente, já devia estar habituada a isso, mas não estava. Tinha a impressão de que Justin não era o gênero de pessoa a quem as outras se habituavam.
Assim que entrou no carro, ligou o motor e pós o aquecimento no máximo. A temperatura baixaria significamente e eu calculei que o bom tempo chegaria ao fim. O casaco dele, porém, mantinha-me quente e eu aspirava o seu perfume quando pensava que ele não poderia ver-me fazê-lo.
Justin saiu do estacionamento, avançando por entre o tráfego, apararentemente sem olhar, virando de repente para trás para seguir em direção à estrada nacional.
- Agora - disse ele de forma sugestiva - É a tua vez.
- Posso fazer apenas mais uma pergunta? - pedi enquanto ele acelerava excessivamente ao percorrer a rua sossegada. Não parecia estar a prestar atenção nenhuma à estrada.
- Só uma - acedeu, com os lábios cerrados a formarem uma linha cautelosa.
- Bem... disseste que sabias que eu não entrei na livraria e que me dirigi para Sul. Estava apenas a intergorrar-me como é que sabias disso.
Desviou o olhar, deliberado.
- Pensei que já tínhamos superado todas as atitudes evasivas - resmunguei.
Ele quase sorriu.
- Então muito bem. Segui o teu cheiro.
Olhou para a estrada, concedendo-me tempo para me recompor. Não me ocorria uma resposta aceitável para aquela afirmação, mas arquivei-a cuidadosamente para análise futura. Tentei voltar a concentrar-me. Não estava preparada para deixá-lo terminar, agora que estava finalmente a explicar os factos.
- E, então, não me respondeste a uma das minha primeiras perguntas - empatei.
Ele olhou-me com um ar reprovador.
- Qual?
- Como é que funciona a questão da adivinhação do pensamento? Consegues advinhar os pensamentos de qualquer pessoa, em qualquer lugar? Como é que consegues? O resto da tua família também pode...?
Senti-me tola por pedir esclarecimentos acerca de um faz de conta.
- Isso é mais do que uma pergunta - salientou ele.
Limitei-me a entrelaçar os dedos e a olhá-lo fixamente, aguardando uma resposta.
- Não, só eu é que posso. E não consigo auscultar qualquer pessoa, em qualquer lugar. Tenho de estar relativamente próximo. Quanto mais conhecida é a ... "voz" de uma pessoa, maior é a distância a que consigo auscultá-la, mas, mesmo assim, a não mais do que alguns quilómetros - deteve-se pensativamente - Assemelha-se a um pouco a estar num enorme salão cheio de pessoas, com toda a gente a falar ao mesmo tempo. É apenas um murmúrio, de vozes ao fundo. Até me concentrar numa única só e, então, o que essa pessoa estiver a pensar torna-se claro pra mim. Durante a maior parte do tempo, desligo-me simplesmente de tudo isso, é muito perturbador. E, depois, é mais fácil parecer normal - franziu o sobrolho ao pronunciar a palavra - Quando estou acidentalmente a responder aos pensamentos de alguém em vez de responder às suas palavras.
- Porque motivo julgas que não consegues auscultar-me? - perguntei com curiosidade.
- Não sei - murmurou - O único palpite é que talvez a tua mente não funcione da mesma forma que a das restantes pessoas, como se os teus pensamentos estivessem na frequência AM e eu só conseguisse sintonizar em FM.
Lançou-me um sorriso rasgado, subitamente divertido.
- A minha mente não funciona convenientemente? Sou uma aberração?
Tais palavras incomodavam-me mais do que deviam, provavelmente devido ao facto de a sua especulação ter tocado no ponto sensível. Eu sempre tive essa suspeita e envergonhada-me que a mesma fosse confirmada.
- Ouço vozes dentro da minha cabeça e tu estás preocupada com a possibilidade de seres uma aberração - riu-se - Não te preocupes, trata-se apenas de uma teoria... - o seu semblante cerrou-se - O que nos leva novamente a ti.
Suspirei. Por onde haveria de começar?
- Não superamos já todas as evasivas? - relembrou-me suavemente.
Desviei o olhar do rosto dele pela primeira vez, tentando encontrar as palavras certas. Reparei, por acaso, no velocímetro.
- Valha -me deus! - gritei - Abranda!
- O que é que se passa? - inquiriu a sobrancelha, mas o carro não desacelerou.
- Vais a 160km por hora!
Eu continuava a gritar. Lancei um olhar de pânico pelo vidro, mas estava demasiado escuro para conseguir ver grande coisa. A estrada do era visível na longa macha de claridade azulada projetada pelos faróis. A floresta que se estendia de ambos os lados da estrada assemelha-se a um muro negro.
- Descontrai-te, Sell.
Revirou os olhos, continuando sem abrandar.
- Estás a tentar fazer com que ambos morremos? - interroguei.
- Não vamos bater.
Tentei modular a voz.
- Porque estás com tanta pressa?
- Conduzo sempre desta forma.
Virou-se para me sorrir.
- Não tires os olhos da estrada!
- Nunca me envolvi num acidente, Sell, nunca sequer fui multado - esboçou um sorriso largo e bateu com a mão na testa - Detetor de radar incorporado.
- Muito engraçado! - exclamei, irritada - O meu pai é polícia, lembras-te? Fui educada para obedecer às regras do trânsito. Além disso, se nos transformares numa rosquilha de marca volvo a envolver o tronco de uma árvore, podes provavelmente sair ileso.
- Provavelmente - concordou com uma breve e vigorosa gargalhada - Mas tu não - suspirou e eu vi, com alívio, o ponteiro a baixar gradualmente para os 120km por hora - Satisfeita?
- Quase.
- Detesto conduzir devagar - murmurou ele por entre os dentes.
- Isto é devagar?
- Já chega de comentários sobre a minha condução - disse ele com brusquidão - Ainda estou à espera de ouvir a tua mais recente teoria.
Mordi o lábio. Ele olhou-me de cima, com olhos cor de mel subitamente ternos.
- Eu não me rio - prometeu.
- Receio mais que fiques zangado comigo.
- É assim tão má?
- Sim, bastante.
Ele aguardou. Eu olhava para as minhas mãos, de modo a não poder ver a expressão estampada no seu rosto.
- Continua.
A sua voz estava calma.
- Não sei por onde começar - reconheci.
- Porque não começas pelo princípio... disseste que não a elaboraste sozinha.
- Pois não.
- O que é que a desencadeou? Um livro? Um filme? - sandou.
- Não, foi o dia de sábado, na praia.
Arrisquei um olhar de relance para o seu rosto. Ele parecia intrigado.
- Encontrei um velho amigo de família, Abel Tesfaye - prossegui - O pai dele e o meu são amigos desde que eu era bebé.
Ele continuava com um ar confuso.
- O pai dele é um dos anciãos Quileutes - eu observava-o cuidadosamente. A sua expressão de confusão manteve-se inalterada.
- Fomos dar uma volta - omiti todas as minhas máquinações da história - E ele contou-me algumas lendas antigas, tentando assustar-me, creio eu. Contou-me uma... - hesitei.
- Continua - disse ele.
- Sobre vampiros.
Apercebi-me de que estava a sussurrar. Não conseguia agora olha-lo no rosto, mas vi os nos dos seus dedos a contraírem-se compulsivamente no volante.
- E pensas imediatamente em mim?
Continuava calmo.
- Não. Ele... mencionou a tua família.
Calou-se, olhando fixamente para a estrada. Fiquei subitamente preocupada, preocupada com a segurança de Abel.
- Ele pensava apenas que se tratava de uma superstição tola - disse eu rapidamente - Não esperava que eu retirasse daí algumas ilações.
Tal não pareceu ser suficiente, tinha de confessar.
- A culpa foi minha, obriguei-o a contar-me.
- Porquê?
- A Lauren disse algo a teu respeito, estava a tentar provocar-me, e um rapaz mais velho da tribo referiu que a tua família não ia à reserva, só que percebi que as suas palavras tinham um segundo sentido. Assim, fiz por ficar a sós com o Abel e levei-o a fazer-me essas revelações - admiti, baixando a cabeça.
Ele assustou-me ao rir-se. Lancei-lhe um olhar irado. Estava a rir-se, mas os seus olhos estavam ferozes, virando-se no que se encontrava à sua frente.
- Como é que levaste a fazê-lo? - perguntou.
- Tentei namoriscá-lo... foi mais eficaz do que eu pensava.
A incredulidade enrubesceu-me ao lembrar-me.
- Gostava de ter assistido - soltou um sinistro riso abafado - E acusaste-me a mim de deslumbrar pessoas. Pobre Abel Tesfaye!
Corei e olhei, pelo vidro do meu lado, para a noite.
- O que fizeste então? - perguntou um momento depois.
- Fiz algumas pesquisas na internet.
- E isso convenceu-te?
O seu tom de voz revelava um escasso interesse, mas as suas mãos seguravam firmamente o volante.
- Não. Nada se encaixava. A maior parte da informação era bastante disparatada. Então... - detive-me.
- O quê?
- Cheguei a conclusão que não tinha importância - sussurrei.
- Não tinha importância?
O seu tom de voz fez-me erguer o olhar, conseguia finalmente penetrar na sua máscara cuidadosamente composta. O rosto transmitia incredulidade, com apenas um laivo da raiva que eu temia.
- Não - disse brandamente - Não me interessa o que tu és.Continua...
VOCÊ ESTÁ LENDO
Luz E Escuridão
Romance"Nunca refletia longamente sobre a forma como morreria, ainda que, ao longo dos meses anteriores, tivesse tido de sobra para tal, mas mesmo que o tivesse feito, jamais teria imaginado que seria assim. Olhei fixamente para o lado oposto da longa sal...