Prólogo

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Dentro da noite alta e escura, envolvido por uma capa de frio e penumbra, o bambuzal existia imponente como milhares de estacas fincadas no solo. Os tubos, incontáveis, dançavam ao sabor do vento e produziam melodias soturnas, chocando-se fora de controle, farfalhando suas folhas muito verdes ao ritmo de uma madrugada que se iniciava.

Pela trilha que dividia a plantação em duas, Irvine Aurish seguia tranquila, caminhando despreocupada, as mãos cobertas por longas luvas, uma delas carregando uma lanterna chinesa de seda vermelha, a outra ocasionalmente tocando os tubos de bambu. O vestido preto esvoaçava ao movimento de suas pernas compridas, enquanto os cabelos, fios cor de petróleo, emolduravam seu rosto em tom de absurdo contraste. Movia-se de maneira serena, observando os arredores, demonstrando pouca ou nenhuma pressa de chegar onde quer que fosse. Percorreu, assim, o bambuzal em momentos lentos, até que finalmente atravessou seus limites e alcançou uma área aberta, muito ampla, cercada por montanhas que se estendiam adiante, altas e pontiagudas.

Afastando-se do bambuzal, a dama da noite cruzou uma pequena ponte que cortava um riacho e seus gargarejos molhados, prosseguindo pela trilha de terra até repousar os olhos sobre a entrada de uma fenda escura e muito larga: a garganta de uma gruta que avançava diretamente para dentro da montanha, desaparecendo na escuridão que existia adiante. Sem cessar a caminhada por um segundo que fosse, Irvine atravessou a barreira de trevas e se viu mergulhada em um ambiente gélido, silencioso como uma tumba, agourento como um presságio de morte. A lanterna – com uma vela acesa em seu interior – sacudia para os lados e lançava manchas vermelhas pelas paredes e pelo chão da gruta, ocasionalmente revelando objetos abandonados e cobertos de fungos.

Os passos da mulher ecoavam pela caverna em repetições infinitas, e perduraram durante toda a travessia que durara apenas alguns poucos minutos. Aproximando-se do fim da extensa cavidade rochosa, Irvine avistou o outro lado aberto como uma bocarra faminta, por onde a pouca luz produzida pela lua transbordava. Atravessou a passagem e chegou a uma nova área, uma nova gruta, completamente redonda como se lapidada pelas mãos de habilidosos artistas. O teto desta nova área era aberto, e por ele a claridade entrava acompanhada de sopros discretos de vento, assoviando como um coro de fantasmas.

Não eram, entretanto, os sons guturais, ou a luz anêmica da lua, ou as paredes de pedra que captavam a atenção da dama da noite. O que levara aquela mulher até ali era algo maior, mais obscuro e mais macabro do que simples detalhes que a natureza criara e ainda criava. Irvine estava naquele lugar à procura de corpos, não apenas um par, ou uma dúzia. Ela havia sido atraída até ali não por saber que encontraria vinte ou quarenta mortos, mas sim uma centena deles: estava diante de um tipo de mausoléu abandonado, onde cem caixões de madeira, apoiados em bases de pedra, descansavam completamente solitários.

Movendo-se por entre eles como se fosse própria Morte em forma física, Irvine sorriu em um deleite, sustentando a lanterna chinesa diante do rosto e iluminando de vermelho os caixões envelhecidos. Levou, então, uma das mãos ao peito, fechando os olhos em seguida e curvando a cabeça para baixo. Separou os lábios, abriu uma pequena fresta entre eles, e pôs-se a pronunciar palavras sussurrantes, a voz entrecortada a deslizar para fora em um poema de sonoridade poderosa, formado por palavras em um puro e antigo latim. Era como uma oração, uma prece lançada para a noite que foi levada pelo vento e desapareceu na extremidade de comprida e agourenta caverna.

Ao findar-se a última palavra do poema, Irvine recolocou-se a observar os arredores, novamente avistando os cem caixões com suas tampas grossas e empoeiradas. Esperou, certa de seu sucesso, até ouvir ruídos leves, provenientes de movimentos repentinos que vinham de algum lugar no meio da gruta. Tais ruídos tornaram-se progressivos, aumentando de intensidade, passando de leves movimentos a arranhões agressivos, insistentes. De um dos cantos do grande conjunto de caixões, por fim, um deles passou a remexer-se em sua própria base, a tampa sendo forçada de dentro para fora até desprender-se por completo e cair ao chão, em um estampido seco, partindo-se ao meio. Do interior do sepulcro violado por seu próprio ocupante, sob os olhos daquela que o havia acordado, mãos ressecadas de pura pele velha e ossos saíram, acompanhadas de um grunhido pavoroso e, principalmente, de uma luz forte e branca que emanava dos olhos vazios do cadáver.

Vendoseu demoníaco trabalho concluído, Irvine girou-se no próprio eixo e seguiu nadireção da garganta da caverna, deixando atrás de si um morto a levantar-se deseu caixão, a luz da lanterna espalhando manchas vermelhas – como janelas doinferno – por onde a dama da noite e seu sorriso maléfico passavam.

In Nomine Patris 3 | Tenebris HibernusOnde histórias criam vida. Descubra agora