Capítulo XXVI | Xeque-mate

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Pelos segundos em que a névoa deixada pela dissolução dos moradores de Dongji se dissipava, os três amigos foram acometidos pela verdade absoluta que o espelho proibido revelava: o salão comunal de Dongji havia se tornado velho, de paredes descascadas, com vidraças quebradas e vigas cobertas de poeira e vinhas compridas. O chão era imundo e revestido de pó, com buracos de onde o mato crescia em busca de espaço, e por todo o assoalho existiam pedaços de telhas que haviam despencado do teto, partindo-se em dezenas de peças de barro avermelhado.

O desaparecimento da névoa revelou também uma nova imagem, acompanhada da presença de duas figuras vestidas de preto, paradas bem no meio do salão como anjos de pedra em um cemitério. Mostraram-se por completo quando todo o branco gasoso não mais existia, duas mulheres altas, uma delas de cabelos castanhos e olhos completamente negros, a outra de cabeleira cor de petróleo e pele desprovida de qualquer sinal de calor. Eram Irvine e Emmeline– para um choque e desapontamento ainda maior no coração de Jullian –, a vampira de pé, a rainha demônio sentada, emergindo da neblina no largo cômodo de pouca luz.

—E eis que nossos heróis finalmente ressurgem das cinzas! – disse Irvine, batendo palmas, levantando-se de seu assento, que nada mais era do que uma cadeira de rodas antiga, totalmente enferrujada. – Já estava ficando entediada de tanto esperar que resolvessem o meu pequeno mistério!

—Aquela é a criada do senhor Benjamin Hendrik? – Romani sussurrou ao ouvido de Jullian estupefata.

—A própria. E eu estou tão surpreso quanto você – a resposta veio também em um cochicho quase mudo.

Deixando Emmeline para trás, Irvine caminhou graciosamente na direção de Jullian, George e Romani, as pernas compridas deslizando por dentro do vestido, os sapatos pontudos levantando a poeira do chão. Por cima dos ombros ela usava uma espécie de xale bordado em linha preta, que caía sobre o busto e cobria parcialmente o peito, e tinha ainda as mãos cobertas por luvas compridas que subiam-lhe até os cotovelos.

—É um prazer imenso reencontrar todos vocês aqui, nestas terras tão distantes e cheias de mistérios.

—Poupe o nosso tempo de suas palavras vazias, Irvine – disse o padre, inflamado. – Seu pequeno passatempo doentio já foi desfeito, não há mais nada para você aqui.

—Ora, nós mal começamos, Bergamo! – Irvine falava enquanto deslizava graciosamente pela sala. – Achei que gostaria de debater sobre os acontecimentos, sobre as pessoas que conheceu em Dongji. Não acha que a corajosa Mei merece um minuto de sua atenção?

—Você é insana! Como ousou fazer algo tão terrível, Irvine? Isto é cruel demais até para você!

—Vamos, Bergamo. Aquelas pessoas já estavam todas mortas há muitos, muitos anos. Dar um ânimo para suas almas sofridas foi quase um ato de bondade!

—Jullian, do que é que ela está falando? – perguntou George, tentando encaixar os pensamentos. – O que Dongji era, afinal?

—O que nós presenciamos, George, foi uma manifestação infernal muito poderosa, algo que somente pessoas que não tem mais alma conseguem fazer. Estávamos em um reflectoinfernari.

—Reflecto... infernari?

—Um reflecto infernari é uma espécie de bolha, uma fenda entre o mundo dos vivos e o dos mortos que pode ser aberta em locais onde existe uma grande carga de tristeza e de dor, onde houve uma grande tragédia ou mesmo algum crime cruel. Quando em atividade, esta bolha recria o período de tempo onde as coisas ruins aconteceram, apenas para trazer de volta as almas dos que se foram, mas que ainda permanecem de alguma forma presos naquele lugar. E assim o criador da fenda passa a ter domínio sobre aquelas almas, sendo capaz de manipulá-las a seu bel prazer.

In Nomine Patris 3 | Tenebris HibernusOnde histórias criam vida. Descubra agora