O céu estava límpido e com poucas nuvens, mas ainda assim o dia parecia perder a saturação minuto após minuto. Jullian, porém, mantinha-se tão compenetrado em observar cada detalhe da paisagem que sequer lembrava de examinar o que havia acima de sua cabeça. Assistia com olhos vidrados as árvores ficando para trás como se elas próprias – e não o trem – estivessem em movimento. Acompanhava com atenção as mudanças de terreno, as variações de vegetação e também os agrupamentos residenciais que surgiam no decorrer do caminho. Por vezes conseguia trocar vislumbres com os olhos de alguém que passava a pé rente aos trilhos, e inevitavelmente tentava imaginar os nomes, as idades, as histórias que tantas pessoas diferentes teriam para contar.
Contava as estações com cuidado, atentando-se ao número exato de paradas e às placas de identificação que pipocavam diante do trem ao fazer as breves paradas nas plataformas. Conforme o trem avançava mais e mais pelas entranhas da ferrovia, o padre notou com clareza que mais pessoas desciam do que entravam no vagão, fato que de alguma forma conseguiu deixá-lo um tanto inquieto. Olhava discretamente para os outros passageiros e via apenas pessoas cansadas, muitas delas de idade mais avançada, recostadas às janelas mesmo que não parecessem atentas ao trajeto.
Foi apenas na penúltima parada antes de seu destino que Jullian conseguiu, finalmente, notar que estava se aproximando do lugar ao qual queria ir. Quando todos os outros passageiros desceram do trem e uma porção de novos entrou, ele notou que todos eles – fossem as mulheres, os homens ou as crianças – tinham os olhos oblíquos e vestes tradicionais da cultura chinesa. Carregavam seus pertences em sacos feitos de tiras de palha, ou mesmo em cestas artesanais de tamanhos variados. Alguns deles conversavam discretamente entre si, permitindo que o missionário católico ouvisse o que diziam, mesmo que fosse incapaz de compreender sequer uma palavra. Por algum tempo manteve a atenção presa àquelas pessoas, especialmente depois de notar que algumas delas pareciam, de fato, falar sobre ele.
Virando o pescoço levemente para os lados, Jullian pôde avistar quase todos os rostos que dividiam o vagão mirando na direção dele, e com um certo rubor nas bochechas teve a certeza de estar sendo realmente observado. Cada uma das pessoas parecia direcionar-lhe olhares curiosos, como se imaginassem o que um estranho homem de aparência ocidental fazia naquele trem. Estariam, também, todos indo para a região de Dongji?
Envergonhado, o suposto intruso apenas preferiu continuar a assistir o mundo passando rápido pela janela, intencionado a se manter assim até que a estação de Faron finalmente surgisse diante de seus olhos.
*
Como previsto pelo senhor Hendrik, a duração da viagem beirou as seis horas até que o padre visualizasse, do lado direito do trem, as placas que anunciavam a aproximação da estação de Faron. Antes mesmo que a construção surgisse à vista, porém, todos os passageiros puseram-se de pé e formaram uma fila pelo corredor principal do vagão, já munidos de seus pertences e visivelmente apressados em deixar o trem. Continuavam conversando em expressões longas e entonações variadas, muitos já acostumados com a presença do padre, outros ainda lançando olhares de estranheza que o deixavam completamente desconcertado.
Dois ou três minutos depois, por fim, a esperada estação apareceu e de imediato conseguiu hipnotizar o venator, pois diferente de todas as outras pelas quais havia passado, a estação de Faron tinha uma arquitetura completamente oriental. O telhado era vermelho e, se visto de frente, lembrava uma grande canoa graças ao arredondamento que exibia nas extremidades. De um lado e do outro existiam torres de dois ou três andares, repletas de vidraças e que exibiam, cada uma, um relógio que marcava as dezesseis horas. Entre elas, cobertas por mais uma porção de telhas tingidas de vermelho, estava a passagem que levava para o interior da estação, de onde muitas pessoas – quase todas vestindo os mesmos tipos de trajes dos passageiros do vagão – entravam e saiam com expressões despreocupadas.
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In Nomine Patris 3 | Tenebris Hibernus
FantasyCarregando nas costas o peso das terríveis ações de Irvine Aurish, Jullian Bergamo deixa para trás as cinzas e os destroços de sua vida e parte em uma missão de caça à maléfica feiticeira. Pelo caminho, seguindo pistas e sinais deixados pela mulher...