Capítulo III | Pela lei e pela ordem

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A manhã já havia se gastado quando Jullian finalmente alcançou a entrada de Milldon, sob um sol escaldante que quase era capaz de cozinhar os seus miolos. Com a manga de suas vestes ele enxugou o suor que escorria pela testa, apertou os olhos e mirou adiante, tentando descobrir se realmente havia chegado ao lugar correto. Suas pernas, fracas e vacilantes graças à fome e ao cansaço, foram tomadas por um novo impulso de força assim que as botas – gastas e sujas de lama – deixaram a areia batida da estrada e pisaram no asfalto.

A entrada da cidade era demarcada por um monumento de pedra no formato de um pequeno moinho, e pouco além dele já era possível ver as casas e ruas cheias de pedestres caminhando em várias direções. Jullian respirou fundo e tentou andar mais rápido, ciente de que logo encontraria um lugar para comer usando as poucas moedas que ainda lhe restavam; metro após metro ele viu as casinhas se aproximando com seus estilos rústicos e telhados forrados de palha, e não foi difícil para ele deduzir que era um lugar com típicos ares e decorações holandeses. Mas não foi somente a arquitetura do lugar que atraiu sua atenção: Jullian notou que na esmagadora maioria dos postes de iluminação haviam panfletos afixados, contendo rostos de incontáveis mulheres diferentes. Aproximou-se de um dos postes e apertou os olhos para ler as palavras pequenas, logo depois de pronunciar por entre os dentes a palavra maior, escrita em letras garrafais: DESAPARECIDA.

Foi inevitável para ele sentir um arrepio. Lembrou-se instantaneamente dos sequestros ocorridos em Bedford e do que Irvine Aurish tramava para com as garotas desaparecidas. Estaria a reincorporação da Deusa-demônio Lamashtu agindo novamente? Precisava continuar para descobrir.

Depois de atravessar algumas ruelas e seguir o fluxo de pessoas, o viajante alcançou um grande largo que funcionava como um tipo de área comercial, fato este rapidamente notado pelas muitas barracas oferecendo alimentos, roupas e artesanato. Meninos vendedores de jornal e meninas vendedoras de flores dividiam o espaço das calçadas, enquanto charretes e carroças transitavam em suas próprias ocupações. A observação dos arredores só foi interrompida quando uma onda de dores atingiu o estômago de Jullian, relembrando-lhe de seu preocupante estado de escassa alimentação, e sem nenhum pensamento extra ele seguiu em passos decididos na direção das lojinhas a céu aberto.

Entre uma barraca que oferecia temperos e especiarias e outra que lembrava um pequenino parque de diversões graças aos inúmeros brinquedos em exposição, ele avistou um discreto comércio de pães e biscoitos. Aproximou-se acanhadamente e passou a observar o estoque, conferindo as plaquinhas de preços para certificar-se de que poderia comer sem gastar tudo o que ainda carregava no bolso. Empenhado em sua procura – e maravilhado pela grande e vistosa quantidade de pães – ele sequer percebeu os olhares que recebia dos que passavam ao seu lado: olhares de superioridade e desprezo. Os que compravam saquinhos de temperos coloridos procuravam afastar-se dele, enquanto as mães que agradavam aos filhos com brinquedos arrastavam suas crianças para perto de si. Foi apenas quando estendeu a mão direita para apontar ao pão que compraria que Jullian, finalmente, percebeu que não era bem-vindo naquele lugar.

—Você não pode ficar aqui – disse a moça que tomava conta da barraca. – Está espantando os outros clientes!

—O que disse? – Jullian perguntou, perplexo, recolhendo a mão para junto de si.

—Eu disse que você não pode ficar aqui! É capaz até de estragar os meus pães com esse fedor – a vendedora continuou, aumentando o tom de voz e abanando os braços como se espantasse moscas asquerosas. – Vá para junto dos outros mendigos e deixe as pessoas em paz!

—Mas eu... eu...

Assustado e gaguejante, Jullian levou a mão ao bolso e dele retirou uma moeda prateada. Estendeu-a na direção da vendedora, mas seus dedos vacilantes – agora afetados também por um tremor que vinha do fundo de seu peito – deixaram que o pequeno objeto caísse ao chão. Ao curvar-se para recuperá-la ele conseguiu ver os próprios pés, a barra das vestes e até mesmo as mangas que seguiam até seus pulsos, notando a sujeira, a lama e os resquícios da poeira de dias de viagem sem limpar-se decentemente. Era mesmo como um mendigo: rasgado por fora e mais ainda por dentro.

In Nomine Patris 3 | Tenebris HibernusOnde histórias criam vida. Descubra agora