Capítulo I | A cabana e a estrada

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Quando Jullian abriu os olhos, tudo o que conseguiu ver foi o avermelhado vivo das chamas. Elas subiam pelas paredes de seu dormitório, invadindo as janelas e estilhaçando os vidros em milhares de pedaços pontiagudos. O teto de madeira rangia incandescente, e tudo que se via no quarto havia sido engolido pelo fogo: os armários, as cadeiras, a estante de livros onde as anotações de anos perdiam-se em formato de cinzas.

Deitado em sua cama, com o corpo paralisado pelo desespero, Jullian conseguia apenas mover os olhos e observar o que acontecia ao seu redor. Sentia a temperatura alcançando suas vestes, fazendo suar a sua pele e arder os lábios, já secos de calor e sede. Tentava mover-se, mas parecia preso por uma força implacável que o mantinha preso ao colchão. Lutou, gritou e puxou o ar em busca de fôlego, até que por fim teve forças para se libertar. Deixou o leito e deslizou pelo quarto incendiado, saltitando para os lados para escapar dos pontos onde as chamas já subiam até o teto. Alcançando a porta, saltou na direção da sala e esquivou-se de mais focos flamejantes, vendo todos os seus pertences – entre bíblias, batinas e utensílios de trabalho –sendo completamente incinerados pelo fogo impiedoso.

Quando o ar já lhe faltava em meio à fumaça escura que tomava conta de tudo, Jullian alcançou a porta principal e a abriu, sentindo de imediato um pouco de ar puro. Cambaleou para o beco que levava até a rua, em meio a tosses incontroláveis, e poucos segundos depois já via os tijolos que formavam a longa calçada que fazia parte da igreja. Mas não foi apenas isto o que viu. Ao erguer a cabeça na direção da rua, o padre foi arrebatado por uma visão dilacerante, tão vermelha e ardente quanto o próprio inferno. Toda a cidade, da parte mais baixa até o topo do morro que levava ao cemitério, estava em chamas. Cada uma das casas, dos prédios e das barracas de feira se viam misturadas às labaredas que dançavam no ritmo da noite. As torrentes de fumaça surgiam pelas portas e janelas, por onde os moradores passavam em desespero na tentativa de salvação. Homens, mulheres e crianças, todos reunidos em gritos apavorados e apavorantes, de roupas acesas em vermelho quente, correndo sem rumo para qualquer lugar onde a morte não pudesse alcançar.

Da porta da igreja, incapaz de ajudar qualquer uma daquelas pessoas, Jullian assistia com olhos atônitos. Diante de si, figuras humanas corriam com seus corpos em puro fogo, a carne queimando e a garganta clamando por socorro. Como em uma arena de batalha, chocavam-se uns aos outros e caíam como soldados abatidos, debatendo-se, sufocando, tornando-se nada mais do que uma pilha de cadáveres cor de carvão. Surgiam em fileiras, brotando das chamas e das portas das casas, todos correndo na mesma direção. Caíam, amontoavam-se, formando grupos de mortos que segundo após segundo tomavam conta de toda a extensão da praça principal da cidade. Um tapete humano, que rapidamente se convertia em uma pilha imensa de cadáveres tomados pelo fogo e pela dor.

Sentindo esvair-se o próprio fôlego, Jullian apenas observava e rezava incontáveis preces, clamando pela luz divina que parecia não conseguir atravessar a parede de fumaça que as chamas liberavam em grossas baforadas. Tudo o que conseguia fazer era ver a pilha de corpos crescendo e crescendo, tornando-se uma pirâmide humana que agora já era mais alta que qualquer parte da cidade. As palavras em latim soavam como meros sussurros em meios aos gritos de horror que vinham da pirâmide, deslizando pelos ouvidos e atingindo o coração do bondoso padre como flechas pontiagudas, uma após a outra, dilacerando-lhe por dentro.

Não conseguia mais aguentar. Não suportava mais o calor, os gritos, o medo. Sentiu o dobrar dos joelhos, não em preces, mas em redenção. Sequer tinha forças para juntar as mãos suadas e manchadas de fuligem, mas conseguia ainda enxergar adiante, através do fogo e da fumaça. Viu surgir, no topo do amontoado de corpos, uma figura esguia que se destacava por entre as baforadas cinzentas. Tinha cabelos longos e negros, a pele fantasmagórica, os lábios tão vermelhos quanto a rosa que segurava em uma das mãos. De pé sobre as cabeças dos milhares de mortos, sorria.

In Nomine Patris 3 | Tenebris HibernusOnde histórias criam vida. Descubra agora