Capítulo 10

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Quando a missiva de tia Dothe chegou a primeira hora da manhã seguinte, desmarcando a ida ao teatro naquela mesma noite, Emma quase não pôde conter sua alegria.
— Estimo melhoras, querida sobrinha. — leu em voz alta, deliciando-se com as palavras.
Ir ao teatro na companhia de seus tios a obrigaria a voltar suas atenções a Thompson, duque de Duckbran, candidato já eleito no coração tendencioso de sua tia para a posição de seu marido. A mulher negava veementemente que estivesse empurrando a sobrinha em direção ao título e fortuna mais valiosos. No entanto, era nítido que gentileza e doçura de caráter não compunham a equação. Livre da influência opressiva de sua tia, Emma poderia seguir seu coração.
Basta de lista de pretendentes.
Só existia um homem com via-se casando.
Conservando seu excelente humor, ela desceu desengonçadamente as escadas, saltitando como uma gazela que desfruta pela primeira vez de sua liberdade,  levando os criados de seu pai a se assustarem com um comportamento tão efusivo. Não que os bons empregados tenham deixado transparecer qualquer contrariedade em seu semblante. A criadagem da casa do poderoso duque de Grandfield orgulhava-se de seu treinamento impecável na arte servil.
— Bom dia, meu amado pai — cumprimento Emma, ao adentrar a sala durante o café da manhã. — Como passou a noite?
Ele sentiu dores e uma terrível falta de ar, que o impedira de dormir a maior parte do tempo. Mas observando o rosto resplandecente e a alegria que emanava da jovem a sua frente, jamais passaria por sua mente, qualquer outra resposta que não fosse uma que elevasse ainda mais o estado de ânimo de sua filha. Ela assemelhava-se tanto a mãe quando estava assim, tão risonha.
— Estou me sentindo como se tivesse trinta anos novamente. — o duque declarou, colocando um pedaço de presunto na boca.
Ela o examinou, desconfiada por um instante, contudo, em um dia tão perfeito como aquele, talvez a vida tenha resolvido lhe sorrir, exibindo todos seus dentes, e até mesmo seu pai foi contemplado com tamanha maré de sorte.
— Me alegra em saber. Quem sabe hoje o senhor esteja disposto o suficiente para darmos uma volta no jardim. Um pouco de ar puro fará bem para sua saúde.
— Oh, o dia está bonito em excesso para que você desperdiçar sua tarde como enfermeira de um velho.
— Mais que velho? Seremos apenas nós, uma resplandecente jovem de dezoito e seu honorável pai de trinta anos.
O velho duque riu.
— Está certo, minha menina. Veremos se minhas forças se sustentarão até lá.
Emma forçou seu sorriso a se manter no lugar. Mas sua alma já não sorria com tanta facilidade. As últimas três tentativas de passeio com o pai haviam fracassado, lembrando-a que a vida de antes, em que ela encontrava consolo e carinho sendo içada nos braços fortes e capazes de seu  pai, agora não existia. Se almejasse dar pouco mais de dez passos, o duque necessitava que ela o auxiliasse, dando-lhe apoio.
Era estranho para um duque, Emma sabia, depender tanto de alguém.
E ela sentia uma falta  terrível de poder depender por inteiro da proteção do pai.
— O que aconteceu, Emma? Onde está a garota exultante que entrara aqui minutos antes?
Empurrando seus sentimentos de volta de onde eles saíram, ela começou a se servir com tudo o que encontrava sobre a mesa, tentando ocupar a mente com comida.
— Recebi péssimas notícias, pai. Tia Dothe infelizmente não poderá ir comigo hoje ao teatro. — ela sabia exatamente que expressão usar para ganhar total deferência do pai. Foi assim que ganhou um pônei quando ainda tinha apenas quatro anos. — Agora me vejo impedida de ir, pois não tenho acompanhante.
— Emma, se eu pudesse, você sabe que faria todo o possível para levá-la...
A voz do pai a acertou como lâminas afiadas. Como pôde ser tão ingênua? Com sua abordagem nada elaborada, ela o fez sentir-se culpado por não ser capaz de acompanhá-la. Que tola ela era.
— Oh pai, por favor, não lamente por não poder ir. — Emma saiu do seu lugar, indo em direção ao duque. — Estou caçando um marido. Pais imponentes e com títulos de duque só afugentam e intimidam os pretendentes. Faça-me a gentileza de ficar quietinho no seu escritório. Sua participação no meu plano limita-se em assinar todas as notas de crédito para que eu possa comprar meus belos vestidos.
Ela o abraçou, envolvendo o pescoço dos pais com os braços. Metade dela estava com medo de machucá-lo. A outra metade, desesperada para abraçá-lo o mais apertado fosse possível.
— Você é muito insolente, menina — o duque reclamou. — Compre vestidos excepcionais. Precisará deles a seu favor.
— Oh céus, eu sua versão feminina. O senhor não devia me recriminar. Ao contrário, receio que um pedido de desculpa seja necessário. Acabarei me tornando uma solteirona se não tentar conter meus impulsos desordeiros.
O corpo dele ficou rígido dentro do abraço da filha.
— Não faça graça com isso. —  o tom de voz era sério, um tanto sombrio. —  Você deve se casar, minha filha. Nunca descansarei em paz se não possuir a certeza que a deixei amparada neste mundo.
— Eu ficarei em segurança. Mesmo que...
— Não. — ele a cortou, a pele começava a gelar de maneira preocupante. Um calafrio correu por todo o corpo do duque, até atingir Emma. — Não farei concessões quanto a este assunto. Você deve se casar. Um marido é a melhor proteção para uma moça sem marido.
Aquele tom de voz, a aspereza das palavras. Tudo aquilo fez Emma sentir medo.
— Mas o senhor não me obrigaria, não é? O Senhor me prometeu que a minha opinião seria considerada.
Ele tocou a face da filha, numa carícia fraca. Seus dedos estavam gélidos como o dos mortos.
— E eu cumprirei minha promessa. E você também cumprirá a que fez ao seu velho pai.
Emma franziu a testa.
— A que se refere, pai?
— Você disse que sempre me honraria, Emma. Você tinha apenas dez anos, mas naquele dia tornou-me o homem mais feliz que já andou sobre a Terra. — ao ouvi-lo, ela começou a recordar-se daquele dia. — Você prometeu honrar meu sobrenome, minha família e meu cuidado com você.
—  Eu prometi. —  interrompeu ela com a voz embargada. — E ficarei feliz em cumprir.
Emma sabia que a indulgência de seu pai logo seria reprimida pela iminência de vê-la casada e sob a proteção de uma nova família. Ela devia isso a ele. Depois de uma vida de privilégios e zelo, o pai certamente a contemplaria caminhar pela nave da catedral de St. Paul.
E, esperançosamente, George estaria à espera dela no altar.
Se não fosse ele, teria que ser outro.
— Evidentemente — emendou Emma. — para cumprir minha promessa, preciso ir ao maior número de eventos possível. E o teatro está lotado hoje.
—  Diga logo o que pretende, Emma, e me deixe terminar meu desjejum.
—  É uma coisa bem simples, na verdade. Eu arrumei uma nova família, que me acompanhará ao teatro, se eu obtiver sua concordância.
— E que faria seria está?
— Os Bridgertons. —  ela declarou com confiança, embora suas mãos estivessem tremendo.
Seu pai ficou em silêncio, pensativo, prolongando a apreensão de Emma a níveis alarmantes.
—  O criado de Dorothea veio esta manhã com o recado. Como pode ter dado tempo de outra família oferecer-se para assumir tal responsabilidade?
Cristo, que homem esperto! Não faria mal se fosse um pouquinho menos.
—  Eu conheci a viscondessa algumas semanas atrás. Nos tornamos próximas — Tão próximas quanto pessoas que moravam em continentes diversos. —  Ela me convidou, mas eu declinei do convite, porque tia Dothe poderia se magoar ao ser preterida. Mas agora que ela não pode ir, creio que seja o arranjo perfeito ir com os Bridgertons. Eles são uma família muito respeitado.
— Sim, sim. Conheci Anthony em Cambridge. Um sujeito responsável, na maior parte do tempo.
—  Então o senhor permite que eu vá ao teatro com eles?
—  Bem, claro, não vejo problema.
Excelente! Emma estava exultante. Iria estar no mesmo camarote com a família Bridgerton. Co George. Agora só faltava informá-lo disso.
—  Ah, esqueci. Também fui convidada para um chá na casa de lady Violet esta tarde. As mulheres da família se reúnem lá semanalmente para passar algum tempo agradável.
—  Hum, aparentemente, você acolhida no seio daquela família. Isso é bom. São boas pessoas.
—  Oh, sim, eles me adoram.
**
Algumas horas mais tarde, em uma primorosa casa que exibia em seu exterior o número 5, boa parte da prole da família Bridgerton estava reunida em volta de uma mesa recheada de sanduíches, bolos e chá de ervas. Os homens, que geralmente eram privados desse momento seleto, estavam sentados nos diversos sofás que foram adicionais com o passar dos anos.
A conversa enchia o ambiente com som de vozes e risadas. Era quase ensurdecedor, mas, de fato, muito divertido ser convidado para uma tarde de chá do número cinco. Não ser convidado também era encantador, refletiu Emma, tentando se convencer a seguir em frente. Ela hesitara ao subir as escadas da calçada. Hesitara ao bater a aldrava da porta. Hesitara quando o mordomo a atendera e logo a levara a uma sala enquanto anunciava sua presença.
Céus, o que ela estava fazendo ali?
A intrusa Emma está aqui para vê-la, milady, ela já podia ouvir o mordomo anunciar.
Aquilo era uma loucura. Ainda não podia acreditar que Nathalia a convencera a vir até a casa de uma viscondessa no meio da tarde para impor sua presença.
Tomara que Nathalia tivesse cumprido sua promessa e estivesse em algum lugar ali para oferecer-lhe apoio.
De repente, ela ouviu a porta abrindo-se e subitamente mudou de ideia. Aquilo era ridículo. Ela ia inventar uma desculpa ao mordomo e partir imediatamente.
— Ah, eu acabei de lembrar... —  disse, virando-se para o mordomo.
No entanto, o homem a sua frente não podia nunca ser confundido com um mordomo.
—  La-lady St-t-tonne.
—  Eu fui convidada. —  declarou Emma, atropelando as palavras. —  Eu não estaria aqui, se não fosse este o caso. Se a senhorita Durbshire esqueceu-se de avisá-los que me convidou, não devo me sentir mal por esse lapso cometido certamente sem nenhuma intenção. Nathalia é uma moça adorável, ela deve ter andado atarefada e por isso não os comunicou.
Ele ficou em silêncio. E Emma interpretou mal sua reação.
— Oh, eu vou embora. — ela recolheu sua bolsa, que estava sobre o sofá e levantou-se. — Eu não devia ter vindo.
Ela estava falando numa frequência que o deixava tonto. George queria pedir que ela simplesmente calasse a boca, mas como dizer isso a uma dama de um modo educado? Cristo, ele não havia se recuperado da surpresa de encontrá-la ali e lady Stonne já anunciara sua partida.
Provavelmente ela não era consciente que para manter um diálogo com ele, suas frases precisariam seguir um ritmo calmo, para que George tivesse qualquer chance de comunicar-se e não servisse apenas como ouvinte. Só as pessoas que o conheciam bem sabiam lidar  com esse tipo peculiaridade. Emma, por sua vez, estava quase passando por cima dele para alcançar a porta enquanto ele ainda tentava formar a primeira palavra.
Não foi muito delicado de sua parte. Ele a agarrou pelo braço com o intuito de impedi-la de sair da sala. Ela não ofereceu resistência, apenas o encarou com um olhar interrogativo e surpreso.
Por Deus, aquela garota era um vendaval, uma tempestade de inverno, ela não deixava nada no lugar ao seu redor. Dentro dele. Era impossível manter uma constância.
Exasperado, fez um sinal para que ela esperasse um minuto.
Emma pareceu entender melhor do que ele supunha que o fizesse.
— Desculpe-me. — pediu devagar, ruborizando. — Eu me excedo um pouco quando estou nervosa.
George arqueou uma sobrancelha.
— U-um po-pouco?
— Talvez muito.
George arqueou novamente a sobrancelha.
— Com certeza muito.
Ele a soltou e ausência do calor do corpo dele foi sentida até a alma de Emma. Eles ainda estavam perto um do outro, numa distância que desafiava a decência. Mas, ainda assim, ela desejou dar um passo a frente. Melhor, ela desejou que ele desse um passo em sua direção.
Mas ele não o fez, é claro. Ao invés disso, George recuou, nitidamente desconcertado com a proximidade dos seus corpos. Emma lembrou das palavras de Nathalia. De sua teoria de que o Sr. Bridgerton não era assim tão indiferente a ela como aparentava. Analisando com cautela, ela podia perceber nele uma certa oscilação de vontade. Era como se em um segundo, ou em menos tempo que isso, George cedesse e esquecesse todas as razões que povoavam sua mente instigando-o a manter-se afastado. Mas então o lado racional dele sempre preponderava, erguendo um muro entre eles novamente.
— Vo-você veio p-p-p-ara o chá-á?  — a voz dele arrancou-a de seus pensamentos.
— Sim. — respondeu Emma, em seguida sentiu a necessidade e completar: — Eu fui convidada!
Uma contração de lábios, que dependendo da posição que se observasse podia ser considerada um sorriso, surgiu o rosto de George.
— I-s-sso eu j-á- ent-tendi. — disse ele, e então fez uma pergunta que surpreendeu a Emma. — Pos-so a-acompa-panhá-la até lá?
— Mas eu estava de saída... — ela disse sem raciocinar.
— Vo-você é-é bem-bem-vinda em nos-sso meio.
Emma reprimiu um sorriso maior do que ela já estava esboçando, para não o afugentar com tamanha euforia.
— Bem, talvez a senhorita Durbshire  tenha esquecido de avisá-los da minha presença, porque ela, em realidade, não me convidou.
Foi algo arriscado de se dizer. Emma se expôs sobremaneira inventando aquilo. Ah sim, o convite para o chá havia partido da senhorita Durbshire. Na verdade, Nathalia havia lhe garantido que estar ali seria uma excelente jogada no plano de conquistar o Sr. Bridgerton. Mas naquele momento, Emma tinha a necessidade de saber se ele estava apenas sendo o cavalheiro sempre adorável que foi educação para ser, ou estava realmente feliz em vê-la.
Emma jogou alto.
— Nest-te ca-caso, eu-u a estou convi-vi-vidando.
E acertou em cheio.

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