Capítulo 4

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— Voc-cê se a-li-limentou ho-hoje?
— Perdão? — Emma retorquiu confusa, sua mente enevoando-se.
George arqueou as sobrancelhas, uma expressão que deixava claro que ele não repetiria a pergunta.
— Eu desejei comer. — Emma explicou a ele. A língua ligeiramente enrolada ao tentar pronunciar as palavras. Será que o que o Sr. Bridgerton tinha era contagioso? E que raio de pensamento insensível e tolo era esse? Oh, ela estava se sentindo um pouco estranha. Confusa, ela tentou concentrar na pergunta que ele lhe fizera. — Não havia espaço para comida.
Ele queria rir dela. Emma podia sentir no ar a sugestão de um sorriso sendo reprimido.
— Fique à vontade para rir. — ela declarou, alto demais, fazendo um gesto exagerado com as mãos e então sentou numa poltrona, relaxando imediatamente. Que mobília mais confortável! Ela se reclinou e suspirou contente.
— Isso é o paraíso! — Emma falava cada vez mais alto, e com cada vez mais euforia. — Agora eu entendo porque vocês passam tanto tempo em seus escritórios. Oh, o visconde é um homem de sorte. É tão aconchegante! Será que se eu perguntasse, ele me diria onde comprou essa poltrona? E você acha que ela combinaria com a mobília do meu quarto? Talvez fique elegante se eu a colocar perto da janela. Eu posso me sentar e olhar o pôr do sol todos os dias!
Nada que ela falava fazia sentido. E isso era um mal sinal. George mergulhou os dedos no cabelo, bagunçando os fios, confuso sobre como agir. Ele estava encrencado. Havia concordado em dar bebida a uma jovenzinha que, se ele inspirasse profundamente, certamente ainda exalaria cheiro de leite. Quantos anos será que ela tinha? Dezoito? Ela era jovem demais e burra demais. Caso contrário, ela não estaria ali com ele, correndo um considerável risco de comprometer-se, e sim ao lado de Thompson, o duque que garotas como ela costumam agarrar com os dentes.
— O q-q-que voc-cê quis diz-zer com "nã-não havia espaç-o para co-mi-mida"?
— Ah, sim, isso. — Lady Emma deleitava-se na poltrona como se a mobília fosse o corpo de um amante apaixonado. Ele teve que se segurar para não rir. — A minha tia Dothe deu medidas menores para a modista. Ela diz que o que está em voga no momento são mulheres com as formas pequenas e elegantes. Quando o vestido chegou esta manhã para última prova, eu quase não consegui respirar. Precisei passar o dia todo em jejum a fim de tentar abrir espaço no espartilho para que meus pulmões pudessem trabalhar. Mesmo assim o vestido permanece apertado. É uma tortura.
As suspeitas de George foram confirmadas. Ele nunca vira alguém ficar bêbada com tamanha rapidez. Certamente a falta de hábito e o estômago vazio agiram em conjunto para deixá-la naquele estado, ele mesmo já sofrera com isso no passado. Mas, àquela altura, não importava quais tenham sido as causas, a grande questão era como ele resolveria o problema.
— Você pode me ajudar a afrouxar meu espartilho? — a garota perguntou, com a mesma naturalidade que alguém comenta sobre o clima. — Agora que tocamos neste assunto, eu me sinto um pouco tonta, deve ser por falta de ar. E eu não quero ser a mulher que é assassinada pelo próprio vestido! É uma morte pouco digna para a filha de um duque.
Ela começou a mexer no laço do corpete de seu vestido, tentando desfazê-lo. George praguejou, ignorando mais uma vez o fato de estar na presença de uma dama, e se aproximou dela, segurando suas mãos, para que lady Stonne fosse incapaz de despir-se bem ali.
— Voc-cê tem q-q-que ficar vestida-da. — ele ordenou em tom sério.
Emma pareceu magoada.
— Mas eu não estou respirando!
— Isso é-é um exa-xager-o. V-amos, insp-pire bem fund-do.
Para a surpresa dele, Emma o obedeceu sem protestar. O peito dela inflou à medida que Emma enchia os pulmões de ar, um sorriso de completo contentamento moldando seu rosto.
— Estou salva. — disse, maravilhada com a própria respiração — Você é o meu herói!
Antes que ele pudesse reagir, a garota lançou os braços a redor do seu pescoço e se aninhou em um abraço apertado. Agora era George que se sentia como se o ar lhe faltasse por todo corpo. Principalmente no cérebro, não havia ar no seu cérebro.
—La-lady St-t-tonne... — ele começou, tentando ignorar a fragrância deliciosa e a maciez convidativa do corpo daquela mulher. Mulher, era a primeira vez na noite que George a enxergava assim, e não como uma garota.
Aquilo era perigoso.
Nunca se coloque em uma situação comprometedora, se você não pode casar-se com a mulher para reparar o dano, George Bridgerton sabia disso, sempre seguira essa importante premissa. Todas as mulheres que teve foram cortesãs experientes, que não esperavam nada mais dele do que pagamento e prazer (necessariamente nessa ordem de importância), ou aventureiras, mulheres maduras e viúvas, que não viam o casamento como um fim desejável.
Emma Stonne não era mulher para ele. E se ela estivesse sóbria certamente concordaria e se veria horrorizada por estar em seus braços. Uma coisa que George podia dizer sobre o seu país era que cada um sabia exatamente seu devido lugar. Não era comum ver o filho de um açougueiro passeando pelo Hyde Park no meio da tarde. Tampouco era esperado que a filha de um cavalheiro cultivasse amizade com a filha dos criados da propriedade do seu pai. E filhas de duques, com um dote como o de Emma, não eram preparadas para se casar como alguém como ele.
Não que ele quisesse se casar com ela ou sonhasse com isso. Mas da forma como a garota estava agarrada a ele, era impossível não antever a possibilidade.
Mas que diabo!
George a afastou de modo rude. Ele viu a consternação refletida no olhar dela, mas não tinha tempo para preservar seus sentimentos delicados. Ele precisava agir. Tirar a garota uma vez por todas do seu caminho. Antes que o pior acontecesse. Antes que eles fossem descobertos e lady Emma fosse obrigada a aceitar um casamento forçado com um cavalheiro que não era, nem mesmo na mais generosa das avaliações, sua melhor opção.
Na maioria das vezes ele conseguia afastar-se dos pensamentos depreciativos, silenciá-los corajosamente, para que pudesse andar de cabeça erguida. Jamais sentira pena de si mesmo. O que a falta de destreza na fala roubava dele, George compensava sendo inteligente e sóbrio, cuidando de si mesmo, e mandando a todos que o viam como um incapaz para o inferno.
Mas não podia ignorar a realidade.
Ele era diferente. E em alguns aspectos, ele era menos do que os outros. Menos rico, menos nobre, menos galante, menos desenvolto. Emma Stonne fora criada acostumada somente com o melhor.
Cuidando para a tocar demasiadamente, tentou mantê-la erguida sobre os próprios pés. Eles precisavam sair dali, e lady Stonne precisava seguir o próprio caminho, deixando-o livre de complicações indesejadas. Mas antes que pudesse pensar em qualquer plano, a porta do escritório se abriu e eles não estavam mais sozinhos.
— Ora, ora... 

Anthony Bridgerton recuperou-se rapidamente do espanto inicial e fechou a porta atrás de si, enquanto uma mescla de curiosidade e consternação fazia com que ele se perguntasse em que diabos George havia se metido. Podia esperar aquele comportamento da maioria dos homens de sua família, ele próprio havia beijado Kate ali, mesmo que não houvesse nenhum compromisso firmado entre eles, mas George... Seu sobrinho era constantemente centrado e um exemplar de cavalheirismo refinado.
– Ora, ora... – o visconde repetiu, uma vez que ele parecia ser o único disposto a quebrar o silêncio.
Mas Anthony se enganara. A jovem ali presente estava, na verdade, muito entusiasmada por uma conversa. Ela ultrapassou o obstáculo que o corpo de George lhe impunha na tentativa de proteger sua identidade. O rapaz tentou até mesmo impedi-la, mas Emma desviou-se dele com invejável habilidade (considerando seu estado de embriaguez).
– Oh, lorde Bridgerton, que maravilhoso encontrá-lo aqui! – ela fez uma reverência desajeitada, em seguida acrescentou efusivamente: – Eu queria mesmo falar com o senhor...
– L-lady Sto-tonne. – George tocou-lhe o braço, um gesto sutil para demonstrar que ela não devia dizer nada que piorasse o que já era uma cena terrível.
– Shhh... – foi a resposta que ela deu a ele. Então voltou-se novamente para o visconde, que ainda os encarava intrigado. – Milorde, o senhor teria a bondade de me dizer onde esta maravilhosa poltrona foi comprada? Melhor ainda, o senhor tem planos de desfazer-se dela? Eu garanto que estou disposta a pagar uma quantia generosa.
Anthony arqueou a sobrancelha, completamente aturdido com o rumo da conversa.
– Poltrona?
– Esta. – ela se aconchegou na mobília mais uma vez e sorriu. – É o assento mais confortável em que já me sentei. Eu poderia ficar sentada aqui a noite toda.
Não, ela não poderia. Os dois homens no recinto trocaram olhares, numa conversa silenciosa, da qual não queriam que lady Stonne tomasse conhecimento. George se aproximou do tio discretamente. O visconde ainda não havia se afastado da porta desde que entrara em seu escritório em busca de um pouco de tranquilidade.
– Tio, eu p-posso expli-plicar.
Ele contou a Anthony, da forma mais resumida e ágil que conseguiu, todos os acontecimentos que antecederam àquela abominável confusão. Enquanto os dois homens conversavam e tentavam decidir o futuro da jovem, Emma levantou-se num arroubo de determinação.
– Cem libras! – anunciou impetuosamente. Como os dois homens continuaram em silêncio, ela apostou em uma oferta mais irresistível. – Mil libras!
Um suspiro de desânimo escapou dos lábios de Anthony.
– A filha de um duque bêbada no meu escritório enquanto participa de um baile oferecido por mim. – ele constatou, franzindo o cenho. – Vou buscar sua tia Kate, ela irá adorar dar um jeito nessa bagunça.
A viscondessa foi, de fato, muito eficiente em resolver tudo. Primeiro se oferecera para mentir, dizendo que era a companhia de lady Stonne durante todo o tempo que a jovem se ausentara do salão. Em seguida, mandou um lacaio ao encontro dos tios dela, para esclarecer ao casal que a sobrinha havia sofrido um mal súbito, possivelmente provocado pela queda daquela noite. E por fim – e o que lhe demandara mais trabalho – convencera a Emma a fingir que havia adormecido.
– Mas eu não estou com sono! – Emma protestou com a voz arrastada, enquanto Kate a empurrava até a cama dossel de um de seus quartos de hóspedes.
George também estava ali. Ele não podia simplesmente afastar-se da situação, deixando que os tios cuidassem sozinhos da garota. Fora o grande culpado por tudo. Se a reputação de Lady Stonne sofresse qualquer prejuízo, ele não seria capaz se perdoar. A garota a sua frente estava destinada à grandes chances, e seu único erro naquela noite havia sido cruzar seu caminho com o dele.
– Mi-milady – George disse, aproximando-se da cama. –  Fec-che os olhos, por fa-favor. Ou e-eu e você esta-taremos em ap-puros.
A voz dele infiltrou-se em cada parte do corpo de Emma. Ela sentiu o som tocá-la. Mesmo consciente de que um som não era algo físico, podia jurar que as palavras dele acariciaram sua face.
– Sim, senhor Bridgerton. – ela concordou, fechando os olhos. – E agora?
Ele reprimiu um sorriso, embora não fosse necessário, uma vez que ela não podia vê-lo.
– Ago-gora fique quiet-ta. E tent-te dormir.
– Sim, senhor Bridgerton. – ela respondeu, mas então deu-se conta que fizera o oposto do que ele dissera. – Desculpa. Vou ficar quieta a partir desse instante.
– Ót-timo.
– Só mais uma coisa. – ela pediu, abrindo apenas um olho.
– S-sim?
– Obrigada Sr. Bridgerton. Você é um cavalheiro honrado.

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