08 | Labaredas

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  Era uma manhã chuvosa, fazia muito frio. As aulas haviam sido, na verdade, canceladas de última hora devido ao temporal, mas Lis ainda não havia se socializado o suficiente para saber disso.

  Entrara correndo na escola, já percebendo a ausência da multidão convencional. Ao receber a notícia, de um zelador, pensou em voltar para casa, mas ainda chovia muito. Preferiu esperar a chuvarada passar e torcer para que alguém mais estivesse ali.

  Aproveitara para ensaiar sua coreografia na sala de dança, que estava vazia assim como quase toda a escola. Devido ao silêncio e à boa acústica local, apenas o celular da garota foi preciso para preencher seus ouvidos com a música.

  Na frente do enorme espelho da sala de dança, ela fazia seus passos pré-ensaiados, imaginando que Chris estivesse ali com ela. Via-se dançando com ele. Errava, tentava novamente. Caía, levantava-se. A música acabava, ela reiniciava. Estava determinada a vencer logo aquela tarefa que lhe fora proposta.

  Lis estava de olhos fechados, envolvida pela música. Dançando sozinha, sentia como se o tempo dançasse junto a ela, coreografando em uma sintonia perfeita, indo e voltando, rodopiando, segurando-a e a fazendo ir do passado ao futuro em segundos. A letra e o ritmo a conduziam, e os passos saíam automaticamente como se viessem de sua alma. Ela apenas deixava-se levar, permitindo que o tempo dançasse com ela.

  A música havia parado mais uma vez, mas Lis ainda sentia-se envolvida naquele transe. Hesitou um pouco na posição final, que desfez-se gradativamente.

-- Você dança muito bem. -- disse o tempo, que agora se chamava Natan.

  Lis abriu os olhos, assustada. A música estava prestes a recomeçar. Durante alguns instantes, ficou paralisada, encarando Nathan sem reação. Sentiu que estava corando e isso a despertou para tomar alguma atitude.

  "O que você faz aqui?", perguntou timidamente. Em sua cabeça, pensava: "Alisson, você é o cúmulo sa lerdeza!".

- Eu também vim desavisado para a escola, e não quis voltar em um temporal desses. E você?

  "Mesma coisa. Por quê começou a dançar comigo?"

-- Ouvi a música, te vi dançando... achei que poderia ajudar se você dançasse com alguém. Sabe, é sempre mais fácil quando se tem alguém com você... -- ele sorriu gentilmente.

  Lis permaneceu em silêncio, envergonhada. Companhia era algo que ela realmente precisava para dançar, mesmo que Nathan não fosse seu parceiro. Antes que pudesse dizer ou fazer algo, fora interrompida por ele.

-- Escute. -- e já se ouvia novamente aquele calmo instrumental do início daquela música -- Começou de novo. Me concede esta dança, senhorita? -- brincou.

  Lis deu um sorriso tímido, aceitando o pedido.

  A coreografia começava como uma dança clássica: Lis, com uma das mãos sobre os ombros de Nathan, e ele com uma em sua cintura; a outra mão de cada um segurava a do outro, e juntos, eles giravam lentamente pelo salão de dança.

  Nathan não sabia a coreografia, mas a estava fazendo mesmo assim. Lis não sabia como ele iria dançar, mas o acompanhava mesmo assim.

  De alguma forma, os dois criavam seus passos automaticamente, de maneira perfeitamente sincronizada, sem sequer um ensaio prévio. Era apenas uma estranha sintonia, que nem eles sabiam de onde vinha. Lis emtrava novamente em transe, mas agora com Nathan e ciente de sua presença. A sensação parecia ainda melhor tendo ele para conduzí-la.

  Nathan a erguia, segurando pela cintura, e Lis era girada sem os pés no chão, sendo abaixada aos poucos. As mãos se seguravam; ele lançou o braço para um lado, levando Lis consigo, em rodopios; e a fazia voltar enrolada pelo mesmo, com um abraço quente para finalizar o passo. Com um passo de balet, ele a girou com o braço erguido, assim como o dela, e Lis ficava na ponta dos pés. Voltaram, então, à posição de dança de salão, que logo se desfez em um novo movimento, já próximo ao final da música: Nathan a ergueu novamente, mas desta vez, Lis abraçou-lhe a cintura com as pernas; por sua vez, ele, a segurando pelas costas, os girou, enquanto ela, de braços abertos, deitava-se sobre os dele, entregue ao calor do momento. A música, então, parou novamente. Por aquela ser uma sequência ajustada para tocar duas vezes, Lis tinha que reiniciar a canção a cada duas tentativas de coreografia.

  Os dois paravam lentamente de girar, de dançar, de se completar. Lis reerguia seu corpo devagar, logo apoiando suas mãos no pescoço de Nathan; e ele ainda não a havia soltado nem a posto no chão.

  O olhar de Nathan era incomum. Ele a fitava profundamente, como se estivesse encantado com um anjo. Ela também o olhava da mesma forma, como se estivesse esperando que um anjo dissesse que iria trazer ele de volta. Nos olhos de Nathan, ela enxergava Christian, e sentia o mesmo afeto pelos dois. Ou, talvez, mais ainda por Nathan.

- Você... dança muito bem. -- repetiu ele, sem deixar de fitá-la.

  "Você me guiou a música inteira", disse, usando os sinais, sem medo de soltar suas mãos do pescoço dele.

-- De onde veio isso?

  "O quê?"

-- Essa... sintonia. Como se eu soubesse exatamente o que você ia fazer... como se você soubesse exatamente o que eu ia fazer...

  Lis não sabia o que responder. Sequer conseguia pensar direito. Estava focada na profundidade dos olhos de Nathan. Quase perdera-se na imensidão âmbar daquelas íris. Recuperada a consciência, teve de improvisar.

  "Você está quente", disfarçou, "eu estou com frio."

-- Oh, sim... -- e balançou a cabeça, parecendo afastar algum pensamento ou despertar de um transe.

  Ele a colocou no chão devagar, como se não quisesse deixá-la sair de seu domínio. Sem perceber, suas mãos continuaram na cintura de Lis.

  Tímida, ela mexia os dedos com ansiedade, bem próxima a Nathan. Então o abraçou, pedindo ternura. Este, por sua vez, a mantinha aquecida com a temperatura do seu próprio corpo, envolvendo-a com seus braços e acariciando os cabelos. O som da chuva lá fora parecia tornar tudo mais frio, mas o calor emitido por ele parecia formar uma confortável lareira. Na verdade, era bem mais que isso. Era uma fornalha, madeira em combustão, uma labareda.

  "Seu coração está..." - pensava Lis, sentindo as batidas cardíacas de Nathan. Sua cabeça estava apoiada contra o peito dele; mas preferiu não dizer nada.

-- Vamos sair daqui. -- disse ele, tentando disfarcar o clima -- Talvez haja alguém conhecido lá fora...

  Os dois saíram, ainda bem próximos um do outro, para aquecerem-se entre si. Andavam abraçados pelos corredores cobertos até chegarem a uma escada, que dava em um pátio interno. Do outro lado, estava o refeitório, onde viam-se algumas cabeças de gente, e pareciam servir algo para comer. No entanto, para chegarem lá, teriam de passar pelo campo aberto que estava debaixo de chuva.

-- Talvez estejam servindo sopa no refeitório, mas... -- começou Nathan, olhando para as gotas de chuva.

  Sob o teto que cobria a entrada do refeitório, alguém acenou para eles, de longe. Era Sean, chamando os dois. Nathan, ao vê-lo, logo sorriu. Lis entendeu aquele sorriso: ele iria se jogar na chuva e chegar ao refeitório encharcado.

  Tentando impedí-lo, Lis segurou sua mão, mas era tarde demais: ele já estava correndo, debaixo de chuva. O que poderia fazer? Receosa, Lis apenas correu junto com ele. Sabia que Sean faria algo sujo, e ela precisava estar lá para pelo menos tentar impedir.

  "Sean, por quê?", pensava, observando-o enquanto corria através da chuva.

Yin & Yang | A Sintonia de Dois OpostosOnde histórias criam vida. Descubra agora