Prefácio

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🔞Conteúdo adulto com temas delicados.

Ane acordou ainda mais exausta do que fora dormir. Seu corpo pesava como uma rocha; afundando no oceano, sendo puxada por uma âncora.
Murmurou remexendo-se. Estava difícil de alcançar o equilíbrio e se levantar. Com muito custo conseguiu pelo menos se sentar na cama. Bagunçou um pouco mais os cabelos, que agora tingidos de loiros; com mechas amarronzadas, tinham sido cortados num chanel de bico, na altura dos ombros. Talita quase pirou quando a viu pela chamada de vídeo. Amava aqueles ruivos radiantes e demorou a se contentar com o novo cabelo da noiva. Os bicos eram longos, enfeitando seu colo alvo e sardento. Mas, não foi sua única mudança no visual. Suas íris mudaram repentinamente de cor, só que naturalmente. Certa manhã despertou e elas haviam modificado de castanhos para azuis-turquesas. Na época, ela estava nos EUA com Geovane. O homem ficou tão preocupado pensando que ela estaria sofrendo de uma patologia grave, que a levou em diversos especialistas em Washington. No entanto, o misterioso fenômeno ficou sem solução. Ane fez inúmeros exames, constatando que sua saúde gozava em perfeito estado. Geovane insistiu que ela também fizesse um pequeno tratamento psicológico para avaliar se o humor contribuía de alguma forma para o fato. Ane acabou concordando. Porém, na décima sessão desistiu de continuar indo. Ele não se opôs. O próprio se cansou das deduções evasivas da ciência ao explicar o acontecimento, utilizando seus conhecimentos limitados pelo materialismo. Desde então eles se conformaram com a situação e levavam a vida normalmente. Contudo tivera que prometer ao pai que faria uma visita clínica semestralmente para se precaver de surpresas desagradáveis e acompanhar se seu caso evoluísse de forma indesejável. Já nos primeiros meses cursando medicina, ela decidiu fazer suas próprias pesquisas em torno disso. Criou até um pequeno laboratório, onde passava a maior parte do tempo estudando após o horário de faculdade.

Esfregou os olhos para despertar por completo. Sonolenta; profundo bocejo escapou. Até que por fim chegou na posição vertical. Arrastou os pés descalços pela madeira encerada até a escrivaninha que mais parecia a mesa de um cientista paranormal com sérios distúrbios mentais, e sentou-se na cadeira giratória confortável, de tecido rosa acolchoado, idêntico ao papel de parede do quarto, uma decoração infantil e besta, segundo Talita, mas Ane gostava bastante desse estilo. Pegou o telefone celular e conferiu as últimas notificações. Arfou. Nenhum sinal da vaqueira. Elas haviam discutido feio, depois que Ane admitiu tê-la traído numa calourada. A consciência começou a pesar tanto que quase não conseguia conversar com ela e então resolveu falar a verdade, embora soubesse que a reação da noiva seria, de fato, péssima. Não a culpava, porque se tivesse sido ao contrário, também a odiaria. Sentiu-se mal por ter cometido tamanha impulsividade. Talita ficou tão puta que a mandou para o quinto dos infernos com direito a apenas uma passagem de ida.
Liliane argumentou transferindo a culpa na bebedeira, mas não funcionou. Sentia-se sozinha e carente como nunca. A vaqueira não desapegava-se da sua vida no campo, quebrando a promessa que lhe fez ao garantir que iria pelo menos visitá-la quando desse. Já haviam se passado quase dois anos. Estava cansada de esperar por ela. Jogou o celular na bancada de vidro com fúria sem se importar em possivelmente quebrar-lhe o visor. Mesmo que não justificasse, também achava que Talita era, de alguma forma, culpada da traição, por deixá-la ao Deus dará, tudo em nome do apego onde nasceu e cresceu, no fundo sabendo que seria bom viver novas experiências em outros lugares, no entanto, sem coragem de abrir mão por medo do desconhecido.

Vasculhou alguns papéis até encontrar seu caderno de desenho, enterrado neles. Folheou em busca do mais recente; uma mulher trajada num vestido longo, preto, coberto por rendas, e um véu igualmente negro escondendo sua face. Era uma viúva negra. Abriu a bolsa de giz de cera e escolheu o vermelho. Faltava-lhe algo e um impulso a compelia a completar a imagem. O batom vermelho gritante, era o único vestígio que ela deixava escapar de sua face. Coloriu o local onde se localizava a boca dela, pintando o formato de seus lábios. Pronto. Estava feito. Seu espírito passara a madrugada num casarão no meio de um pântano em busca de qualquer isca que lhe revelasse a identidade da mulher. Completava quase dois meses que Ane começou a vê-la. Em uma dessas visões, ela arrastava Talita para um lago profundo de água suja, onde emergiam mãos posicionando simetricamente em todas as partes do corpo dela, tentando puxá-la para se juntar a eles. Desde então, a visão sempre se repetia. Seu dom alcançava proporções surpreendentes. O lado artístico aflorou e depois disso ela começou a desenhar divinamente. Arriscou alguns quadros, que acabou vendendo numa feira livre de artes em sua estadia em Boston.

Minha Cowgirl na Cidade ( Sáfico) Onde histórias criam vida. Descubra agora