capítulo quatro - 2018

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Eu soube quanto tempo havia perdido, mas sei que quando menos esperei, Jihyo já me chamava pela entrada da porta de seu escritório.

Era minha segunda consulta, que eu evitava pensar a qualquer custo. Mas desta vez, olhar para Jihyo não pareceu tão assustador quanto na primeira vez. Aquele dia, ela parecia — levemente — até radiante. Percebi que tinha pintinhas pelo canto do rosto, e me fixei a admirar aquilo, até o choque de realidade chegar em mim por um sermão da psicóloga.

— Se continuar encarando, vai ficar sem rosto daqui a pouco.

Me sentei no sofá, desconfortável até demais. Dava para perceber de longe. Segurava meus joelhos, minha coluna extremamente reta, e minha cabeça abaixada, sem coragem de encarar o que viria pela frente. Mas não me incomodei, Jihyo deve ter recebido gente muito pior do que eu.

— Vamos começar. — Anunciou. — Como foi esses dias, Jinyoung? Sentiu alguma coisa estranha?

Você nem imagina.

— Não, meus dias foram tranquilos. — Jihyo torceu o nariz. — Sem crises. — E adicionei: — Eu não tenho elas frequentemente, só em situações específicas.

— Poderia me dizer, como elas são?

— Eu só choro sem parar, e não consigo me mexer por estar concentrado demais em expulsar a água do meu corpo pelos olhos. — Expliquei. — E, quase sempre, depois de uma crise, eu vou dormir.

Jihyo assentiu, anotando em seu caderninho. Se eu tinha motivos para confirmar que minha vida era um verdadeiro filme, Jihyo era o número um da lista.

— Jinyoung, e quais são esses momentos específicos?

Hora de mentir de novo.

— São quando eu lembro de uma coisa triste do passado. Mas depois passa.

Jihyo fez algumas perguntas a mais, mas eu tratei de usar a mesma tática. Não iria dar mole, mesmo fazendo aquilo por Yugyeom. Eu sabia o quanto precisava de ajuda, mas botar em prática era a grande muralha. Porque se eu botasse pra fora, alguma hora aquilo sairia, eu seria condenado, e aí sim, iria piorar muito mais.

Mas Jihyo não aguentava. Ela sabia. Ah, se sabia. Jihyo não era boba. Ela era psicóloga, era inteligente. Era dona do olhar penetrante e das pontinhas fofas. Se eu tinha algum risco de me desfazer perto dela, esses riscos chegavam na casa dos oitenta por cento.

Então, falei do livro.

— Jihyo, você conhece a si mesma direitinho? — Jihyo piscou, pensou por um momento, e assentiu. Antes de ela perguntar o por quê, tornei a dizer: — Acho que não consigo encontrar minha identidade.

Xeque-mate. Encontrei minha escapada.

— Ontem, eu estava na biblioteca pública, eu acabei lendo um livro, obviamente. Mas algo naquele livro me intrigou. A personagem principal. Ela era duas pessoas ao mesmo tempo. Na primeira, uma menininha fazendeira que tinha perdido sua casa em um incêndio. Na segunda, uma adolescente guerreira que precisava salvar seu reino. A distinção entre as personalidades, confundindo uma só? Ou fosse duas lutando para ser uma. Afinal, ela era a garotinha, ou a adolescente?

— E como você se identifica nisso, Jinyoung?

— Porque eu sempre me deixei levar pelas coisas, sabe? Sempre ignorei que eu tivesse escolha de decidir quem eu queria ser. Agora, eu percebi. E percebi que tenho muito mais do que duas personalidades. Eu tenho imensas, e não sei qual é a mais adequada para se escolher.

Jihyo não anotou nada no seu caderno, pelo contrário, ajeitou-se melhor na poltrona, e suspirou, me encarando com seu olhar profundo.

— Sabe, eu também já estive assim. A identidade é algo bem difícil de se identificar, na verdade. Porque ela vai muito além do que você vê, é o que você escolhe e o que você sente que é por dentro. — Assenti, surpreendido que eu entendesse aquilo como a palma da minha mão. — Mas Jinyoung, e agora, como você vê a sua identidade?

Pensei bastante, abaixando a cabeça.

— Eu... Vejo... — Engoli a seco. — Eu vejo traumas.

─━⊱❉⊰━─

A televisão estava ligada quando cheguei. Não lembrava de ter a deixado, então sugeri que Yugyeom tivesse esquecido. Desliguei, antes de ver uma notícia sobre a morte de um grupo de refugiados que escapava para a Europa. Puxei a tomada rapidamente. Aquelas pessoas tinham uma identidade, mas era inválida. Quantas seriam assim? Se procurar minha identidade é tão importante assim, porque para outros é como se fosse ridículo e repugnante? Não tínhamos todos esse direito?

Sentei em minha poltrona, olhando a janela atrás da TV, onde os prédios cobriam toda a paisagem de um mundo novo, colorido e fantástico. Os sons urbanos logo abaixo ajudavam a tornar o repugnante em algo aceitável, talvez, belo.

Será que seria assim sobre aquilo? Cobrir minha identidade com prédios cinzas e sons de carros? Poderia, um dia, eu derrubá-los sem causar danos?

Fechei os olhos. Eu não quero ser um trauma.

why? ☆ got7Onde histórias criam vida. Descubra agora