capítulo um

6 0 0
                                    

Meus dedos tremiam como gravetos de uma árvore em tempestade e ventania, meu corpo tremia sentindo a frieza carregada do tempo, minha imaginação beirava entre passado e presente. Cada ação que a psicóloga tomava à minha frente trazia-me de volta, para tornar a cabeça nos eixos longe daquelas lembranças. Quando eu tinha meu melhor amigo por perto, meu pai também, e toda aquela baboseira que mais tarde acabou se tornando uma morte atrás da outra.

Eu soltava tudo delicadamente, impressionando-me com a frieza e persistência. Tinha levado minha vontade até o fim. Teria de contar tim-tim por tim-tim, encher a cabeça de Jihyo com teorias e contos à meu respeito. Talvez como uma outra cabeça ela pudesse raciocinar melhor e me ajudar. Ajudar a escapar dessa prisão fora de cana.

— Então sua adolescência foi perturbadora, como ia dizendo...?

Assenti, fitando a mulher à minha frente. Meu corpo implorava respostas, e esperar que o Q.I altamente qualificado e a sanidade de Jihyo calculassem juntos todas as minhas palavras e sentimentos estava quase me fazendo desistir de continuar e sair pela aquela porta, esperar um carro me atropelar na rua e completar o que deveria ter feito naquele noite.

Mas eu fiquei.

— Porque seu pai, obviamente, sofria de depressão e não estava sabendo cuidar de você muito bem. — Finalmente, depois de dez anos, eu fico sabendo o diagnóstico que tanto atormentou e me encheu de dúvidas com relação a meu pai. Mesmo assim, não fico em choque com a notícia. — Agora, em questão da sua relação com Mark, por que você se afastou dele?

— Porque eu estava confuso. — Respondi simples. Poderia ter dado somente essa frase que Jihyo me entenderia totalmente — ela já estava bem experiente depois de saber literalmente noventa por cento da minha vida naquela manhã — mas continuei. Para assumir não para alguém além de mim, mas para eu mesmo. — E eu estava confuso porque... — Respiro fundo. "Vem, é só dizer." — Eu estava apaixonado. Pelo Mark.

Jihyo balançou a cabeça, anotando no seu caderno. Depois de quase uma hora e meia de palavras trocadas e histórias contadas sobre minha infância, ela não aguentou. Rapidamente coletou seu caderninho e rabiscou-o furiosamente, interligando o que fosse na sua cabeça para o papel e tornando realidade. Como se precisasse de uma confirmação do que acontecia dentro e por fora. Acho que esses cadernos servem para isso, uma linha que interliga a insanidade do paciente com a sanidade de respostas dadas em diagnósticos. Basta anotar toda a loucura que após uma sessão de sobrevivência — uhul! Não enlouqueci junto! —você repara nas semelhanças e dá o ponto final. Você tem ansiedade, você é bipolar, você é piromaníaco. Por aí...

Esperei a coitada terminar de escrever para prosseguir. Preocupado, queria que ela me ouvisse, e não anotasse minha biografia em um monte de papel.

— Eu já tinha me apaixonado antes, uma vez, por uma professora do fundamental. Eu sabia o que era amor a partir do que consegui me auto identificar. Tremedeira, frio na barriga, essas coisas. Eu tinha com ela, então por consequência, estava apaixonado.

"Com Mark, foi diferente. Ou talvez tenha sido o mesmo, não me recordo, porque eu era cego demais para reparar. Éramos uma bela amizade, grudados feito chicletes. Dois chicletes sonhadores e mal-mascados. Havia qualidades em Mark que eu admirava até demais. O seu jeito animado, a coragem que carregava para falar sobre si, mesmo quando tudo na sua vida desmoronava. Ele não temia dizer o que sentia. Talvez porque procurava ajuda dessa forma. Mas enfim. E o sorriso. Ah, eu amava o sorriso dele.

"Todo santo dia eu torcia para encontrar o dono daquele sorriso fofo e inocente. Ser o motivo dele era como ganhar o melhor presente de natal de todos os tempos — sim, isso, conhecer o Papai Noel. Imaginar que eu tinha aquilo todo santo dia, que era retribuído... Minha nossa, não sei como não cheguei a enlouquecer. Porém, não foi a partir daí que minha cabeça começou a explodir. Tivemos o fim do fundamental inteirinho só para nós, até o Ensino Médio e as coisas desandarem. Mark sofrendo dentro de casa muito mais do que antes, e eu um bobo apaixonado por ele. Um bobo apaixonado que ignorava a própria paixão e sua existência, acabando por matá-lo..."

Jihyo fez um sinal. Aquele sinal. Colocou o dedo na frente dos lábios como se pedisse silêncio. Era nosso aviso recém criado. Se eu acabasse durante a história me auto sabotando e colocando para baixo, ela me alertaria para segurar os eixos e me fazer lembrar que não era uma história de tristeza. Que havia memórias boas nela. Aí, eu parava, respirava fundo, e continuava como se nada tivesse acontecido.

— Eu reparei nos sintomas tarde demais. Depois da nossa conversa, eu finalmente me toquei. E fiquei apavorado. Me considerava um erro na sociedade, um bug cheio de vírus criado na pior placa-mãe existente dentro do lixão. E ainda por cima, de marca. Porque se você veio de uma marca importante mas está no lixão, você é algo confuso. Eu gostava do Mark, mas também tinha gostado da professora. Isso seria uma loucura? Hoje em dia conheço como bissexualidade e panssexualidade. Eu posso ser assim, mas também não. Realmente, não me conheço, não sei o que sou ou o que prefiro. Apenas... — Dou de ombros. — Sou confuso.

— Ou não gosta de rótulos. — Jihyo deu um sorriso acolhedor. — Te entendo perfeitamente, Jinyoung.

Retribui o sorriso.

— Naquela época, foi o ápice. Minha cabeça girava mais rápido que o centro da Terra. Sentia que alguém poderia descobrir, por isso, não falei com ninguém. Minha sexualidade e mais um trilhão de mensagens se cruzavam dentro do meu cérebro, para depois, em uma noite, meu pai piorar ainda mais.

"Minha mãe tinha morrido no dia que eu nasci, e meu pai amava ela mais do que tudo, bem mais do que eu, imagino. Ele viu ela morrer no parto, e provavelmente aquilo ficou marcado na memória dele. Ela partiu para me dar espaço. Mas ele não queria eu, ele queria ela. Só ela. Me criou com boa vontade, só até cair totalmente no vício da bebida. Ele tinha o hábito de beber antes, mas alguns anos após a morte da minha mãe, piorou graduavelmente. Havia noites que ele não se aguentava de pé, vinha se arrastando pelas escadas, berrando o nome dela — chuto que estava chorando junto — e caía na cama em um baque, capaz de quebrá-la inteira. Observação, a cama nunca quebrou.

"Eu me virava com o que tinha. Meu pai ganhava pensão pela família que morava longe e qual nunca cheguei a conhecer. Minha família até de fora não eram pessoas muito boas, já que meu pai foi expulso de casa depois de ter caído na farra em uma noite e se casado com minha mãe sem o consentimento dos meus avós. Eram um povo de extremo respeito, conservadores até a alma e extremamente tradicionalistas. Meu pai era a ovelha-negra que precisava estragar a paz. Quando foi embora com mamãe, eles compravam a nossa velha casa e se sustentavam do trabalho dela e da pensão dos meus avós, que por mais conservadores que fossem, ainda acho que amavam o seu filho.

"Teve o acidente que ele perdeu a cabeça depois de beber horrores e quebrou todos os móveis da casa. Depois daquilo ganhamos móveis emprestados. Ele nunca mais teve um outro surto parecido, parou até de beber com frequência!, mas estava para baixo. Vazio, abatido, caminhava desanimado e ignorava a existência de qualquer tipo de vida fora do seu mundinho. Interagia comigo às vezes, mas na maioria eu nunca sabia o que dizer ou fazer, e acabava ali. Só naquela noite que ele teve o ataque porque não aguentou. Tinha bebido, obviamente. E exagerou. Me bateu tanto, tanto, que fiquei acordado a noite inteira chorando de dor na barriga, rosto, braços, coluna, tudo.

"Então, depois de dois dias faltando aula, de noite, ele me vem bater na minha porta do quarto, pedindo por uma conversa. Pedi para que ele fosse embora — e eu não sei da onde surgiram forças para eu dizer aquilo, a ideia de conversar com meu pai tinha sido tão chocante que eu paralisei —, ele me obedeceu e foi aproveitar a noite como antes. Foi nessa hora que tive a ideia.

"Esperei ele ir dormir. Minha cabeça... Ela não estava nas mais perfeitas condições. Estava limpa de processos, lenta, com foco em apenas uma coisa. Ainda lembro daquela sensação, e me arrepio só de pensar.

"Peguei a pistola, carreguei ela, e fui até perto da região onde eu e Mark íamos nos encontrar. Na árvore. Perto da casa dele. E eu decidi que iria me matar."

why? ☆ got7Onde histórias criam vida. Descubra agora