Capítulo 1

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— Eu não amo seu pai de verdade, filho, não mais — ela sussurrou, enquanto acariciava meu cabelo. — Você sabe disso, não sabe?

— Então por que continua com ele, mamãe? — perguntei, com inocência, porque uma criança de 10 anos é realmente inocente. Desprevenida das torturas da vida, e um delas é o amor.

— Não consigo te sustentar sozinha e eu jamais te deixaria na mão de seu pai.

— Ele é um monstro, não é?

Ela parou de acariciar meu cabelo, mostrando todo seu nervosismo.

— Por que acha isso? Ele é o seu pai.

— E meu pai é um monstro.

— Ah, querido, não! Ele só... só... — ficou buscando as palavras, perdida. Buscando mentiras. Porque ela sabia melhor que ninguém que meu pai era sim um monstro.

— Mamãe, olha para o seu rosto — toquei na sua boca cortada. — Papai fez tudo isso com você.

— É, ele fez.

— Papai deveria te amar. Por que ele não te ama?

— O amor é complicado, querido. — segurou nas minhas mãos.
Eu me lembro da tensão no seu olhar. Ela tinha medo de admitir algo que eu já mesmo havia admito: o amor não existe. Não importa se vivemos em Paris, que é considerado a cidade do amor. Ele simplesmente não existe, assim como ateus acham que Deus não existe. Apenas não existe.
De repente, escutamos o portão se abrir. Eu sabia o que viria pela frente, e ela também. Pelo menos achávamos que sabíamos. A gente não sabia que as coisas podiam passar dos limites.

— O monstro chegou, mamãe.

— Ele não é um monstro — disse, me cobrindo com o coberto azul escuro. — Agora descanse, querido, amanhã é um novo dia.

Ela beijou minha testa, como sempre fazia. E depois me garantia que tudo ficaria bem, o problema é que nada ficava bem mais tarde.
Senti seus passos leves, senti ela sair do quarto, apagar a luz e fechar a porta. Me deixando completamente sozinho e desprotegido no escuro. Agarrei meu urso de pelúcia com força, era a única coisa que eu tinha na época, enquanto eu tinha que escutar os gritos agudos da minha mãe e o monstro dizendo palavras e mais palavras terríveis.
Sua vadia!
Puta, você é uma puta!
Não serve para porra nenhuma!
Por que eu me casei com você?
Seu lixo!
Filha da puta!
Vadia escrota!
Puta! Puta! PUTA!
Meus ouvidos doíam tanto que às vezes eu pensava que eles estavam sangrando. O que só dava mais espaço para lágrimas.
Mas aquele dia, foi diferente.

— Olá, querido — forçou uma voz amorosa. — Como foi no trabalho?

— Não é da sua conta, vadia! — gritou. — Cadê minha comida? Sabia que eu estou morrendo de fome?

— Espera, eu já... — ela parou de falar, de repente. Tudo que pude escutar foi um estrondo no chão. Ele a tinha empurrado no chão.

— Você não serve para porra nenhuma!

— Querido, só me dê um tempo. — sua voz já tremia.

— Tempo? — sua risada estranha e bêbada correu pela casa. — Você é uma puta! Por que eu me casei contigo?

— Querido, por favor, eu...

— Chega! — interrompeu. — Eu não aguento mais. Vadias não aprendem nunca.

Escutei minha mãe gritar e algo sendo arrastado pelo chão.

— Eu cansei de você, cansei!

Mais gritos e o som da gaveta sendo aberta.

— Oh, querido, largue essa faca! Não precisa disso. Eu vou melhorar, prometo!

— Você é uma vadia, não vai melhorar.

— Por favor... meu filho...

— Seu filho está pouco se fudendo para a aberrarão que você é, querida.

Eu não me lembro quando eu tomei coragem, mas a essa altura eu já estava caminhando até a cozinha, achando mesmo que poderia impedir alguma loucura.

— Mamãe? — engoli em seco, quando a vi de joelhos no chão, chorando. O monstro tinha uma faca na mão direta, e na esquerda, ele segurava o cabelo dela. A faca estava pressionada no seu pescoço.

— Olá, filho — forçou um sorriso. — Já está na hora de crianças estarem na cama. Nem pra colocar você para dormir sua mãe presta?

Eu realmente nunca senti tanta raiva em vida como senti naquele momento. E o problema não era o meu pai, o problema era o amor. É o amor. Jesus, eu odeio o amor!

— Você é um monstro! — gritei, enquanto lágrimas tomavam conta do meu rosto pequeno. Já estava derrotado pelo meu próprio choro.

— É isso que você tem ensinando ao nosso filho? — perguntou, pressionando mais a faca, deixando que eu visse um pequeno líquido escorrer.
Mamãe gritou mais.

— Papai, não! — me coloquei de joelhos também. Comecei a implorar pela vida da minha mãe como se implorasse pela minha.

— Vocês dois são tão iguais — ele sussurrou, depois de me ouvir gritar sem parar "papai, não!". — Se ama tanto sua mãe, você pode ir com ela.

A faca foi finalmente pressionada. Minha mãe caiu no chão, se debatendo. Não conseguia gritar, mas seus olhos gritavam por ela.
Sangue jorrou sem parar do seu pescoço.
Eu tentei levantar, correr até ela, mas acabei tropeçando no próprio sangue da minha mãe.
Ela já estava morta, e o seu olhar sem vida me assustava, como assustaria qualquer criança de 10 anos.

— Mamãe, vamos, você é forte! — empurrei seu cadáver para lá e para cá, enquanto o monstro ria. — Mamãe, eu tô aqui, por favor.

Escutei o portão se abrir, mas não me importei. Abracei o cadáver da minha mãe, sem me importo com o sangue.
Eu apenas conseguia fazer uma coisa naquele momento: gritar sem parar "mamãe!" enquanto passos tomavam conta da casa.

— Polícia, você está preso! — foi a última coisa que eu ouvi antes de desmaiar ao lado de mamãe.

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