O Fim do Gelo

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Mais um céu se passou, e ele não levou consigo o gelo que dominava o País das Maravilhas. Não tinha mais quem suportasse o frio cortante e seco, e Magno estava rouco de tanto reclamar com Gottan, que reclamava com Bianca, que não se importava com ninguém. Apenas o filho era motivo de sua atenção, e os outros que lidassem com a nova realidade que ela impôs.

Angustiado e exausto, Gottan se fechou sozinho num quarto de hóspedes e se jogou na cama, pensando em como resolver de uma vez por todas aquela situação. Queria entender o porquê de Beatriz não aparecer e ajudá-lo a derreter todo aquele gelo, mas se lembrou que o corpo dela sofria de dores muito fortes quando estavam juntos. E pensar que Beatriz estava tão desesperada de dor à ponto de perder para que ele a matasse. Aquilo estava fora de cogitação para Gottan, ele jamais poderia ser o assassino de sua amada.
No entanto, Beatriz não surgiria enquanto ele estivesse por perto, já que não queria parecer vulnerável para os seus inimigos. As mãos de Gottan foram para o peitoral e ele suspirou, já sentia a garganta arder com o choro que ameaçou começar.

- Você não virá enquanto eu não estiver aqui.

O coração de Gottan doía no peito, pois tinha certeza de que aquilo era verdade. Acabou por rir de sua desgraça.

- Vim para esse mundo para evitar que o gelo destrua tudo, mas acabei destruindo as nossas vidas, Beatriz. O que devo fazer agora? Como vamos lidar com isso?

No fundo, Gottan já sabia a resposta. Para que Beatriz parasse de sofrer, para que ela recuperasse as forças e voltasse para acabar com todo aquele gelo, ele precisava ir embora.

Teria que dar às costas à tudo que conquistou porque não sabia lidar com aquilo. Quando caiu no País das Maravilhas tinha o objetivo de se casar com Bianca e fazer ao máximo para que ela nunca fizesse mal ao povo com seu poder de gelo, no entanto, se apaixonou pela irmã dela, e os dois acabaram pagando um preço muito alto por aquilo.
Beatriz sofreu mais que todos, já tinha problemas desde pequena, se amaldiçoou com uma Ordem absurda, e agora teria que consertar a falha de Bianca. E, para que tudo desse certo, Gottan teria que ficar longe de tudo e por muito tempo.
Era uma decisão difícil, agora ele tinha um filho pequeno, um casamento e um lar. Ir embora e não ver mais sua nova família era doloroso, ainda que não amasse verdadeiramente Bianca.

- Chershire.

- Meu Rei. - Chershire surgiu deitado no acento da poltrona marrom e sorriu largo. - Fui pego.

- Sinto o seu cheiro.

- De fato, não me banhei hoje.

- Poupe - me.

- Perdão, meu Rei.

- Quero que faça uma coisa para mim.

Instantes depois, Chershire entrou pelas ruínas do castelo da Rainha Vermelha e flutuou escadas acima, seguindo para o corredor do quarto mais quente.
Ao parar diante da porta, tirou do pescoço um colar dourado e um pingente vermelho brilhou mais forte em contato com um raio de luz que vinha da grande janela logo atrás do gato.

- O poder está aqui, minha Rainha. Só não nos machuque mais, eu imploro.

Deixou o colar na maçaneta da porta e viu ele desaparecer de imediato, e Chershire tratou de sair dali às pressas, temendo a mudança drástica que aconteceria muito em breve.

No castelo da Rainha Branca, Bianca franziu o cenho ao levar a xícara de chá aos lábios, e passou a vista pelo salão vazio.

- Onde está Gottan?

Uma criada apertou a bandeja com força junto ao peito e esperou não gaguejar ao falar:

- O... O Rei está, bem, ouvimos falar que...

- Está desvairada, criatura?! Diga logo onde está o meu marido!

- Não sabemos. - Admitiu e Bianca a encarou com evidente desgosto. - O Rei Magno e a Rainha Charlotte estão a procura do...

- E é para tanto?! - Se empertigou e deu de ombros, irritada com Gottan. - Sumir já é do costume dele. Gottan deve estar rastejando atrás de Beatriz, aquela sereia de pernas!

As portas do salão se abriram e Maise veio correndo e quase caiu em cima da mesa de chá, o que deixou Bianca possessa e de pé imediatamente.

- A Rainha... A Rainha Vermelha voltou!

De olhos arregalados e coração palpitando em fervor no peito, os olhos de Bianca arregalaram e ela correu para as escadas.

- Meu filho! Protejam o meu filho! Ordeno que protejam Guilhermo! Ordeno!

No céu claro e colorido, o dragão vermelho irrompeu das nuvens e o corpo cinza de Beatriz se materializou em cima dele. No peito estava o colar de pingente vermelho e brilhante, no rosto havia determinação e um curvar de lábios zombeteiro.
Viu lá em baixo todos correndo como insetos perdidos, e esperou que tivessem protegidos de seu ataque. Seria paciente, pois sabia que sua volta teria que vir como uma glória sob o povo.

- Estão preparados para o fogo? ESTÃO PREPARADOS?!

Seu grito causou grande tremor na terra e fogo saiu da boca do dragão, de grandes buracos no chão e do corpo de Beatriz, que gargalhava e quase explodia em chamas. Sentia-se livre para fazer o que quisesse, e assistia com verdadeira satisfação o gelo se derreter por todos os lugares.

Lá em baixo, o povo que se escondeu à tempo ficou feliz por ver o gelo se esvaindo, gritavam de alegria. Muitos se abraçavam e até se arriscavam a sair das suas tocas para brincar com faíscas do fogo.

Magno estava no alto de uma torre ao lado de Charlotte, e seu maxilar estava trincado, contrariado, mas rendido ao desfecho do Gelo. Charlotte falava aos gritos ao seu lado, morria de medo de Beatriz, mas ele não ouvia. O desaparecimento de Gottan e a volta de Beatriz não eram uma coincidência, ele sabia disso, no entanto, não tinha certeza de como as coisas seguiriam com a volta do embate entre irmãs.

- Tranque o Chapeleiro e Ariela em seus quartos, Charlotte. Pare de gritar e faça isso. Vá!

Era inacreditável. Para que o gelo fosse embora, gelo esse causado pelo desmantelo de Bianca, Magno perdeu um aliado e sua inimiga havia voltado. Tentava esconder as mãos trêmulas de medo, e o fogo amaldiçoado que só crescia e se espalhava era tão feroz e intenso que seu poder como Rei jamais seria suficiente para controla-lo.

Indefeso, era assim que Magno se sentia diante do gelo de Bianca e o fogo de Beatriz.

O barulho da água escorrendo foi cortado pela voz de Beatriz, que surgiu voando a cima de si, flutuava  com o dragão na frente de um Magno temeroso e de olhos arregalados. No rosto cinza de sua filha mais nova estava estampado o ódio, a mágoa, e havia ainda um brilho vingativo em seus olhos de fogo. Quando falou, Beatriz tinha os dentes tricados e a voz arrastada como o sibilar de uma cobra peçonhenta.

- Você tem uma dívida comigo, Magno, e tenha certeza de que eu vou cobrar.

The Queens (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora