I - O ódio que há em mim

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Abro os olhos com um pouco de dificuldade, a escuridão não me permitia enxergar muita coisa.

Tateio com cuidado o criado-mudo que ficava do lado da cama e acendo o abajur conseguindo finalmente enxergar alguma coisa.

Meu corpo estava suado e minha boca seca, jogo as cobertas para o lado e sento na cama procurando coragem para ir até à cozinha beber um copo de água.

O relógio do corredor marcava 5h45m, como o meu quarto não tinha porta eu conseguia ouvir perfeitamente o tique-taque dos ponteiros e confesso que ficava meio sombrio.

Já tentei tirar esse relógio de lá várias vezes, mas a vovó sempre o coloca de volta dizendo que é herança do vovô.

Procuro minhas meias embaixo da cama e as coloco no pé já pronta para sair do quarto.

O corredor é extenso e totalmente escuro. A única luz que se encontra no cômodo é a do meu abajur e a da cozinha que se acendeu assim que coloquei os pés no corredor.

Um pouco receosa eu hesito e volto correndo para o quarto. Me lembro que não tinha porta e me amaldiçoo mentalmente por ter feito o meu pai retirá-la.

— Sel? — escuto minha mãe entrar no quarto e congelo fingindo estar dormindo — Sei que não está dormindo — continuei sem me mover até escutar seus passos se distanciando — Certo, não a incomodarei.

Sei que parece uma atitude birrenta e infantil, mas tenho os meus motivos.

Amo a minha mãe, daria a vida por ela e por qualquer pessoa que eu me importo, porém, certas coisas são difíceis de esquecer e eu nunca fui boa em fingir.

Pessoas tendem a fazer e falar coisas que possam vir a te machucar em momentos de surtos e no dia seguinte quando tudo está apaziguado elas esquecem a dor que te fez sentir. Agem como se nada tivesse acontecido e esperam que com você seja assim também, muitas nem o pedido de desculpas conseguem fazer, esquecem completamente ou apenas fingem se esquecer.

Despertei novamente de uma soneca repentina as 7h da manhã ao som de Maybelline do Chuck Berry, dou automaticamente um sorriso antes de me espreguiçar e levantar um pouco sonolenta.

Curtindo a música antiga que minha mãe colocava para a vovó todas as manhãs, separo uma roupa e pego a toalha indo para o banheiro.

Eu tenho uma rotina pelas manhãs que se resume em: tomar banho, vestir uma roupa confortável que serve para a ocasião de sair ou ficar em casa, contar histórias para a minha avó, tomar um chá e passear com meu cachorro.

Já devidamente vestida, estendo a toalha molhada no varal da varanda e vou para a cozinha onde encontro minha querida vózinha sentada esperando o café.

— Oi vovó — dou um beijo terno e demorado em sua testa já enrugada e marcada pelo tempo — Acordou disposta hoje.

— Minha filhinha — a senhorinha de 77 anos que eu amo mais que tudo nessa vida, segura uma boneca dessas que parecem bebê e acaricia o seu cabelo com muita dedicação.

— Ela é muito linda, como se chama? — pergunto acariciando a boneca e vejo os olhos da minha avó atentos em meus movimentos como se em algum momento eu fosse tirar a boneca de suas mãos.

— Selena.

— Ah vovó — engulo a vontade de chorar na frente dela e consigo disfarçar ao ver minha mãe entrando com uma bandeja de café da manhã em mãos.

— Bom dia Sel, seu material chegou agora cedo, me dê só um minutinho que irei pegar — fala colocando a bandeja na mesa e tirando as coisas para dar para a vovó.

— Eu pego, aproveito e faço a feira para a senhora — falo ajudando ela com os alimentos da bandeja.

— Obrigada, não sei o que faria sem você — me limito apenas a sorrir e dou um beijo de despedida na vovó.

— Cuidado — escuto minha mãe dizer antes de eu pegar um casaco no quarto e sair.

Enquanto atravesso a rua para pegar o material nos correios que fica poucos passos da minha casa, eu me recordo de todas as vezes que vinha passear de bicicleta com a vovó, linda, saudável e cheia de vida.

É muito difícil compreender como uma mulher como ela foi vítima de um mal tão grande como o alzheimer, e pior, regredindo cada vez mais na fase que está.

Entro no correio sentindo um frio na barriga de ansiedade, organizo os documentos necessários para a retirada do material e entrego para a moça da recepção.

— Bom dia, vim pegar o pacote que chegou hoje cedo de Oxford, por favor.

— Selena Villin — a mulher diz mexendo no computador e logo se levanta caminhando até uma mesa reservada atrás do balcão — Aqui está.

— Obrigada — agradeço pegando o embrulho e saindo do estabelecimento.

— Nem acredito que vou começar o meu curso de verão — pondero encarando o pacote, louca para abrir e ver o que tem dentro.

Desatenta, ando mexendo no pacote quase o abrindo na rua, a curiosidade de ver o que tinha dentro era tão grande que só fui lembrar que tinha que fazer a feira para a minha mãe quando cheguei ao portão de casa.

Me viro desesperada e em fração de segundos como se fosse algo sobrenatural, um homem aparece atrás de mim e cambaleando como se estivesse bêbado ele nos levou ao chão nos fazendo cair no asfalto frio.

Agarro o pacote que escapou de minhas mãos e me levanto junto com o estranho que me olhava fixamente. O encaro nos olhos e sinto algo em mim se acender, é ódio, e não é pouco.

— Eu conheço você? — o meliante se atreve a pegar uma mecha do meu cabelo e enrolar no dedo.

— Não... Não me toque — sentindo o coração disparado, entro em casa como se estivesse fugindo e nem sequer olho para trás.

O que acabou de acontecer? Por que sinto coisas ruins sobre alguém que sequer conheço?

Astros: Lua MinguanteOnde histórias criam vida. Descubra agora