Prólogo

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Velho Porto "Vieux Port" - Marselha (França), 1863

Um garotinho próximo de seus oito anos corre pelo porto que desemboca no intrépido Mar Mediterrâneo. Seus pés ágeis correm com garra, afastando-se cada vez mais de seu esguio irmão mais velho, Hades, ainda um tanto desengonçado em decorrência do recém ingresso na adolescência.

- Poseidon, seu peste! Me espera! Se você se machucar de novo e o papai vier ralhar comigo, você verá o que te espera!

O pequeno travesso gargalhava. O cheiro característico de água salgada atuava como um elixir que lhe conferia força e energia, saltando por entre grossas cordas e cestos cheios de peixes, sem deixar que a madeira escorregadia lhe roubasse o equilíbrio uma única vez.

- Se eu chegar na ponta do píer antes que me alcance, você me deve um saco de caramelos daquela boulangerie¹ na Panier!

- Ora, seu...

E aquela animada corrida seguiria indefinidamente se dependesse apenas do integrante mais novo dos Legrand. Provocar seu irmão e perambular pelo maior porto do país eram algumas das atividades favoritas de Poseidon. Quando conseguia juntar as duas, então, era a criança mais alegre e espoleta de toda a França.

O menino olhou por cima do ombro uma última vez antes da arrancada final, afastando os cabelos negros de sua testa molhada de suor. Alcançou o local desejado com uma boa vantagem e já começou a pular em comemoração.

- Consegui, eu consegui, mon frère²! Ganhei de você!

Entretanto, tão logo encarou o rosto de seu irmão, percebeu que algo estava errado, sua face naturalmente pálida ainda mais branca que o normal e o cenho franzido de questionamento e preocupação.

Foi só então que notou a movimentação a seu redor, os marinheiros reunidos falando num tom bem diferente do animado esbravejo usual, muitos segurando seus quepes nas mãos ou até fazendo sinais para afastar mau agouro.

Antes que alguém pudesse lhe impedir e aproveitando-se de sua pequenez para passar despercebido, aproximou-se daquela aglomeração tentando captar sobre o que falavam.

- ... pros lados de Toledo. Não sobrou nada do algodão, tudo perdido no oceano.

- Na Ponta do Calhau?! Mas como é que deixaram um homem conduzir um navio carregado por aquelas águas nesta virada de lua? Todo mundo sabe que os ventos ficam imprevisíveis nesta época do ano!

- E o Algorta ainda! Que desperdício!

- Pelo que fiquei sabendo sobraram uns três homens, no máximo. Uma tristeza...

Hades se aproxima de onde o menor escutava, embasbacado, pousando as mãos em seus ombros tensionados, fingindo não perceber a lágrima solitária que escorria pelo jovem rosto, em solidariedade pelas vidas perdidas no mar.

- Espanhol estúpido. - Poseidon finalmente murmura, secando rudemente as maçãs do rosto com as costas da mão - Se estivesse comigo o barco jamais iria afundar, Hades. Jamais.

Qualquer um que não se deixasse cegar pelo tamanho diminuto veria um fogo abrasador queimando no fundo dos olhos daquele pequeno homem e o primogênito considerou mais esperto adiar a troça em resposta às provocações anteriores para um outro momento e arranjar-lhe logo os malditos caramelos.

{¹ Boulangerie = padaria / ² Mon frère = meu irmão}

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São Petersburgo (Rússia), 1864

São Petersburgo não era particularmente um lugar fácil de se viver em 1864. Não que a Rússia por si só já não fosse desafiadora, com seu frio vigoroso, escassez de alimentos e homens brutos de temperamento explosivo, mas, em decorrência da emancipação dos camponeses poucos anos antes, a cidade se tornara um fluxo contínuo de pessoas em busca de emprego e acomodações. Mal se podia andar nas calçadas abarrotadas sem sofrer ao menos um esbarrão. Além disso, o ar gelado começava a acumular indícios da fumaça que escapava das novas fábricas que igualmente se multiplicavam.

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