França, 1885
Catatônico. Esse era o único adjetivo capaz de descrever o estado de Hermes no minutos que seguiu o salto de seu melhor amigo em alto mar.
Como se não pudesse se mexer, observava estático as ondas agitadas arrebentarem na lateral do barco e enxerem o convés d'água, pensando no significado da última frase que Poseidon lhe falara em meio aos ensurdecedores sons da chuva.
Ele... desistira?
O que, de fato, acontecera para que o capitão decidisse embarcar naquela viagem descabida? Por que não compartilhara nenhum detalhe? Será que já planejava aquilo desde o início?
Devia ter insistido no assunto.
Devia ter sido incisivo e jamais deixado o porto francês sem entender completamente quais as motivações daquele estúpido inconsequente.
Devia...
Seus pensamentos foram interrompidos por Ícaro, que finalmente conseguira descer do mastro onde estava desenrolando o pano de uma das velas que dobrara-se de modo incorreto, aterrissando com um baque surdo na madeira escorregadia.
- Ninguém vai se afogar. Não no meu turno.
Desperto por aquela possibilidade – qualquer mínima esperança era bem-vinda – Loreto reascendeu todos os sentidos, ajustando o timão como podia para manter-se na direção em que avistara o moreno pela última vez.
O almirante amarra firmemente uma corda grossa e longa na amurada e então repete o processo no próprio tronco, dirigindo apenas um rápido olhar por sobre o ombro para Hermes antes de também saltar, em busca de Poseidon.
Cabia a ele seguir conduzindo o Olympique na tempestade, mas cada segundo parece um ano inteiro e o primeiro imediato não quer nem pensar no que será de si caso perca aqueles dois homens um na sequência do outro.
Será que Poseidon sabia o quanto o admirava? E Ícaro, por Deus, ele certamente não fazia ideia do tamanho do carinho que nutria por si. Estavam juntos, mas nunca lhe dissera... Não teve a oportunidade de dizer que...
O que aconteceu na sequência foi muito rápido.
A corda se retesou em seu comprimento máximo bem quando, tão abruptamente quanto começara, o temporal cessou. Parecia mentira que a escuridão anterior pudesse se transformar neste bonito céu azul com tamanha rapidez, mas em poucos segundos não havia um único resquício de nuvens no céu e os trovões pareciam lembranças de um passado longínquo.
Dando um jeito de firmar o timão na posição correta, Hermes apressou-se para a borda, onde avistou a silhueta de um homem boiando na superfície. Agindo rapidamente, começa a puxar a corda em direção ao navio e, com o laço firme na cintura, Ícaro consegue ser içado de volta para o barco, um Poseidon inconsciente em seus braços.
Já em segurança, no chão de madeira da meia-nau, o almirante ignora completamente o cansaço em decorrência do tenso mergulho e inicia uma respiração boca-a-boca no capitão desacordado, alternando o movimento com a pressão das palmas no centro de seu tórax. Quando a ação finalmente tem efeito, Poseidon desperta cuspindo bile, água e espuma. Apesar disso, os dois homens ainda têm toda a atenção voltada em verificar se o marinheiro realmente estava bem.
- Agora eu entendo... – O moreno começou, quando finalmente reencontrou a própria voz. Ela saiu rouca e arrastada, mas logo ele voltaria ao normal. – ... o que você viu nele, Loreto. O filho da mãe me deu um beijo que me deixou sem fôlego.
Quase sem acreditar, Ícaro suspira aliviado, finalmente relaxando e deixando escapar uma gargalhada. Hermes, por sua vez, sente que poderia terminar com as próprias mãos o serviço que o afogamento não concluíra, mas prefere puxar o loiro para seus braços e dar-lhe um beijo apaixonado.
Sem acreditar na própria sorte, Poseidon encara aquelas águas com intensidade e sorri honestamente ao voltar-se para os amigos entregues naquele momento muito íntimo e proferir:
- Ei, o que foi que eu disse sobre indecências no meu barco?
Sem interromper o beijo, seu primeiro-imediato lhe mostra o dedo do meio e – pela primeira vez em muito tempo – o moreno acredita que tudo vai ficar bem.
-*-*-
A primeira pessoa que julga avistar o Olympique no horizonte depois de quase um mês de seu sumiço pensa estar vendo coisas, faz o sinal da cruz e afasta-se do cais com medo daquilo se tratar de um mal presságio.
Quando mais pessoas começam a compartilhar da percepção, no entanto, o boato se espalha como vento, não demorando muito a alcançar os ouvidos de Héstia. Ela saíra naquela tarde justamente para comprar uma flor na intenção de animar a irmã mais velha que se encontrava desmotivada e tristonha nos últimos dias, mas, tão logo ouviu as notícias, apressou-se para a casa Legrand.
Atena, por sua vez, nem terminou de ouvi-la.
Escancarou as portas e saiu em disparada para o porto.
As pessoas se amontoam ao redor do navio que acabara de ancorar e a loira tem de forçar a passagem até a frente da multidão, mal acreditando ao ver diante de si os três homens que haviam sida dados como perdidos.
Poseidon estava de costas para sua direção e andava com certa dificuldade, tentando se desvencilhar daquela infinidade de perguntas para retornar o quanto antes para casa. Hermes, entretanto, toca-lhe o ombro e indica-lhe que olhe por sobre o ombro.
Atena se aproxima a passos lentos e tem os olhos marejados ao tocar-lhe o rosto com a ponta dos dedos, verificando se seu marido era mesmo de carne e osso.
- Circe esqueceu de acrescentar algumas informações sobre você no dia que te amaldiçoou, seu idiota. Ela não disse que, tal qual o mar, você é impulsivo, impossível, irresponsável e... – Sua voz falha e Poseidon se aproveita para depositar o mais apaixonado dos beijos em seus lábios.
- Achei que havíamos evoluído desde a lista dos adjetivos com "i", loira.
Ao ouvir o característico vocativo, Atena desaba em seus braços, apertando-lhe forte contra si e beijando-lhe os ombros e o peito numa gratidão infinita.
- Mas eu estava certo, você sabe. O mar realmente nunca me falhou. – Poseidon acrescenta, sussurrando em seu ouvido, sem pressa para desfazer aquele abraço. – Ele me trouxe de volta pra você...
E, pintado com pôr-do-sol, o destino segue sendo fiado em renda e maresia.
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Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...