França, 1885
O dia do noivado de Poseidon e Atena também marcava quase simultaneamente o momento em que Janus finalmente desapegava de seu plano antigo. Avisei que se não funcionasse ficaria por isso, não?, o russo proferia à quilômetros de distância para um Bóris humilhado, que retornaria para as sombras da irrelevância, tendo de dar graças por ainda estar vivo. Está feito. Um homem sábio precisa saber a hora de desistir de um jogo perdido.
Hugh e Legrand, portanto, celebravam a liberdade, ainda que não tivessem propriamente como saber disso.
Não se tratava de uma comemoração pomposa, especialmente porque o tempo relativamente curto exigia que concentrassem esforços na cerimônia do matrimônio, mas foi o suficiente para reunir ambas as famílias e os amigos mais próximos em uma espécie de piquenique ao ar livre, aproveitando-se do bom tempo.
Para onde quer que se olhasse naqueles gramados, encontraria pessoas sorrindo. Era quase como o carnaval uma segunda vez – com quitutes deliciosos, conversas animadas e até uma eventual dança protagonizada por uns primos mais jovens – tudo muito alegre e colorido, mas mais leve.
Um certo Pierre-Auguste Renoir talvez caminhasse pelas redondezas e encontrasse inspiração para um de seus quadros naquela cena bucólica. Atena pintaria um ela própria, caso se julgasse capaz de captar em pinceladas toda aquela delicadeza quase translúcida e, ainda assim, tão clara em cada pequeno detalhe.
Desconhecia boa parte das pessoas ali – retirando-se sua família mais próxima, todos eram convidados de Poseidon – mas a deixara muito satisfeita ver que seu futuro esposo priorizara a presença dos membros de sua tripulação, homens simples e incrivelmente fascinantes que ela tivera a oportunidade de conhecer de forma breve no que provavelmente se caracterizaria como um dos dias mais importantes de sua vida, ao invés de famílias ricas e de renome da sociedade francesa. Há pouco deparara-se com o moreno confortavelmente acomodado em uma mesa, atento a um homem ligeiramente grisalho que exibia uma espécie de tipoia no braço direito, e os dois riam tão genuinamente que era contagiante.
Mais que isso, a russa podia ver suas irmãs divertindo-se, enturmando-se com uma mulher que reconheceu como a esposa de Hades e mais duas outras jovens que aparentavam possuir a mesma idade; sua tia borboleteava pelos círculos sociais, sempre muito boa em conhecer gente nova e estabelecer amizades, e até mesmo Zeus parecia ter quilos a menos pesando em seus ombros. Deus, ela podia identificar o desafogo em si própria!
Sorrindo satisfeita, Atena aproximou-se da toalha estendida que abrigava uma belíssima seleção de queijos, uvas e figos. Dionísio, deveras esperto e perspicaz, acomodara-se por lá desde que chegara e acompanha-lo em uma taça de vinho lhe parecia um absoluto deleite.
Assim transcorreu aquela tarde alegre, como pequenas preciosas engrenagens que se acomodam no lugar. Mas a vida é um maquinário complexo, como se bem sabe, então as peças se encaixam em seu próprio tempo e, nesse processo do esperar, alguns vazios doem mais que outros.
Foi um desses desertos que Poseidon notou no olhar cansado e cheio de uma melancolia quieta de seu mais novo almirante e amigo.
Ícaro tentava disfarçar essa mirada longínqua em direção ao recanto onde o tal Apolo conversava timidamente com a irmã mais nova de Atena, e em sua defesa Poseidon provavelmente não teria percebido esse tom aborrecido se ele próprio e os arredores não estivessem tão... contentes.
Estava prestes a lhe consolar com uma palavra de que, até onde sabia, a garota não estava comprometida nem nada, embora o enteado de Afrodite claramente estivesse perdidamente apaixonado por ela e que, portanto, ainda tinha ao menos uma chance se desejasse arriscar, quando notou que mesmo após a garota levantar-se e afastar-se ao ser chamada pela mãe, o olhar tristonho dele permanecia sobre o jovem loiro sorridente.
Oh.
Compreendendo tudo num instante – e o rapaz tinha mesmo seu encanto, brilhando atraente como o Sol naquela tarde radiante – aproximou-se de Ícaro sem poder dar-lhe muito mais que um tapinha nas costas de apoio, mas desejando que ele soubesse que estava ali, por ele, para o que precisasse.
Com sorte seu toque deve ter dito mais do que se houvesse tentado elaborar o sentimento em palavras, porque o almirante virou-se para ele e forçou um pequeno sorriso.
- Não se preocupe comigo, capitão. Já aceitei há tempos que meu destino parece ser estar sempre perto demais do que desejo, sem nunca conseguir tocar... – E havia no mundo maldições terríveis que não saiam da boca de nenhuma bruxa. – Você já me deu a oportunidade de realizar um sonho que me era tão distante... Nunca poderei expressar como lhe sou grato.
O dono dos olhos verdes dispensou o agradecimento com um balançar de cabeça e deixou-o só, antes que a emoção daquelas palavras lhe fizessem chorar.
O capitão do Olympique, entretanto, não era o único homem perceptivo da tripulação e, enquanto este caminhava entre os convidados a procura de sua noiva, um certo primeiro imediato acercou-se do mais novo membro da marinhagem.
- Não tenho uma aparência angelical como ele, – Hermes começou, sorrindo esperto e sorrateiro a seu lado. – mas também sou loiro, se for esse o seu tipo.
- O quê? – Ícaro parecia genuinamente confuso e aquilo só o deixava mais adorável.
Foi com um pequeno pigarreio que o de cabelos cor de areia continuou:
- Tudo o que estou dizendo é que estou disponível, caso queira alguém efetivamente capaz de gostar de você em retorno.
Dito isso, afasta-se com uma piscadela sabida e tira Héstia para dançar.
Alheio ao choque e surpresa que tingiram de rosa as sardas salpicando as bochechas do almirante, Poseidon finalmente localiza Atena entre os convidados e é como voltar para casa quando seu olhar encontra o cinza daquelas orbes astutas.
- Posso roubá-la por um instante, padre?
Dionísio ri-se e acena em concordância antes de ser deixado a sós naquele cantinho agraciado por uma sombra tão boa, ainda remoendo a conversa anterior tão interessante com a russa.
- Está gostando da festa?
- Uma tarde deveras agradável, Poseidon. A ideia de um convescote não poderia ter sido mais acertada. Obrigada.
Ele dá de ombros, numa falsa modéstia que deixava bem claro o quanto orgulhava-se do andamento perfeito de sua idealização.
- Receio que haja apenas uma coisa terrivelmente errada e, por isso, procurei-lhe para que já a possamos logo resolver.
O cenho de Atena franziu-se, curiosa e levemente preocupada com o que quer que estivesse fora de ordem.
- O que houve?
- Ora, não dançamos juntos uma única vez sequer! – A apreensão dela desmanchou-se num revirar de olhos acompanhado do mais doce dos sorrisos – Não admito que tenha conseguido uma oportunidade no baile, quando a senhorita estava disputadíssima, e agora que devo tê-la só para mim isso me será negado. Não parece justo.
Só para mim. Curioso como as implicações do termo gradativamente passavam a agradar aos dois. Tanto que a loira mal registrou o uso do pronome possessivo, concentrada demais na infinitude daqueles lagos verdejantes que Poseidon exibia no olhar.
Sem perder mais tempo, ele tira Atena para dançar e os dois giram sem parar, palmas animadas ao fundo.
Sapatos afundando na grama, amor afundando no peito.
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Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...