Renda & Maresia - Capítulo 41

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França, 1885

Quando retornou da casa Gareth, Atena estava mais do que inquieta.

O bonito jardim parecia um labirinto sufocante, a temperatura – classificada por nada menos do que agradável por qualquer outra pessoa – lhe enfurecia e ela também sentia o próprio sangue bombeando pelo corpo todo uma impossibilidade de tranquilizar-se.

Por tudo que é mais sagrado, preciso me acalmar!

Decidiu tentar distrair-se com um livro, mas mesmo isso se provou um erro. Não só porque se recordava de Poseidon lhe perguntando acerca de como andava a leitura de sua edição de falava sobre um naufrágio no período pós-guerras napoleônicas.

As semelhanças entre sua história e a das personagens lhe estavam tirando do sério e estava decidida a finalizar a leitura movida por puro ódio, como se aquela atitude pudesse findar seu calvário pessoal, mas tudo ficou pior quando a obra terminou com a morte voluntária do protagonista, tão logo percebeu que perdera o amor de sua querida Deruchette.

"A água chegava-lhe à cintura. A maré levantava-se. O tempo corria. Ao mesmo tempo que a água infinita subia à roda do rochedo Gild-Holm-Ur, ia subindo a imensa tranquilidade da sombra nos olhos profundos de Gilliatt.", o parágrafo final descreve. O navio afasta-se no horizonte: Depois diminuiu. Depois dissipou-se. No momento em que o navio dissipava-se no horizonte, a cabeça desaparecia debaixo da água. Tudo acabou; só restava o mar".

Atena se desespera com aquele maldito ponto final, jogando o livro para o lado como se a lombada queimasse seus dedos. Mas eu correspondi seu amor, idiota! Volte. Volte, por favor...

A russa tinha a concha que Poseidon lhe dera na noite em que lhe pedira em casamento nas mãos, tocando com delicadeza seus contornos calcificados, quando uma batida na porta do quarto sobressaltou-a. Era Perséfone, e se a situação toda não fosse uma indicação clara de seriedade, sua expressão consternada esclareceria tudo.

- Acho que... Você precisa ouvir isso.

Atena não sabe como desceu as escadas e sempre seria grata aos movimentos precisos produzidos pela memória muscular, pois certamente não se sentia capaz de andar até alcançar a sala de visitas.

Lá dentro, dois marinheiros que ela reconheceu como os gêmeos Fobos e Deimos estavam de pé, cabisbaixos, com os chapéus nas mãos. O de cicatriz parecia finalizar um grave relato:

- ... não consideramos uma ameaça real na época e o capitão é o mais esperto de nós, senhor. Acreditamos que, se ele julgava que não havia nenhum problema, é porque não tinha nenhum mesmo. Nunca pensamos que...

Jacques estava sentado no sofá com o rosto afundado nas mãos e Hades andava de um lado a outro, claramente desorientado, murmurando algo como: "Ele nunca me disse... Meu Deus, por quê?".

Sua presença finalmente foi notada e quando seu sogro encarou-lhe com pesar Atena quis sumir. Ele estava...? Não, não podia ser.

- O que... – Sua voz falhou, mas ela se forçou a continuar. – O que houve?

- Sente-se aqui, minha filha.

Não podia se mexer. Precisava ser forte, ou iria desabar.

- Estou bem aqui, senhor. O que houve?

Foi Hades quem se pronunciou na sequência:

- Meu irmão chegou a falar-lhe algo sobre Circe alguma vez?

Circe? O que aquela divindade antiga tinha a ver com isso? Repassou os mitos conhecidos procurando por uma metáfora que fosse, sem obter resultados.

Negando com a cabeça, Atena quase preferiu haver aceitado sentar-se ao ouvir a repetição da história saindo dos lábios dos piratas.

Deveria estar descrente diante daquela fantasia absurda, mas os detalhes da história dos dois que nunca haviam feito sentido antes finalmente se encaixavam. O porque escolhê-la, de tantas moças; o pesar sutil no fundo dos olhos verdes que via em retrospecto quando o acusara naquela primeira briga; a data em branco no diário de viagem...

Com a vista nublada de lágrimas, a loira saiu correndo para o único lugar possível, cenário de seu deleite e pesadelo: a praia.

Quando alcança a altura da faixa de areia, sente os sapatos afundando e livra-se deles de pronto, levantando as saias do vestido de qualquer jeito, pois precisava aproximar-se da orla.

A maré, curiosamente, estava calma e Atena achou uma afronta que a água tivesse a ousadia de se portar daquele modo comportado diante dela. Olha para baixo, para as ondas encharcando a barra de suas saias e tocando seus pés com ternura.

O choro lhe descia livremente pelo rosto e, num ímpeto, não sabe mais o que faz ou não sentido e busca por algo que tivesse consigo para barganhar. Joga, então, no mar o anel coroado por uma pérola que o moreno colocara em seu dedo com tanta gentileza naquela madrugada. A concha ainda seguia firme nas mãos, como uma ponte para comunicação ou o que quer que sua mente pudesse ter concebido naquela sequência irreal de acontecimentos.

- Devolva-o para mim. Traga-o para casa. Estou mandando! Ordenando! Implorando a você...

O oceano, teimoso, devolve na onda seguinte o anel que ela jogou, deixando-o diretamente a sua frente na areia úmida.

- Não quero essa coisa estúpida! Eu quero ele!

O que estivera pensando? Não há respostas. Ajoelha-se e, chorando, ela põe o anel de volta em seu dedo. Por quê? Por que justamente quando me abro e aprendo a ser mais, é nesse momento que eu perco tudo? Por quê, logo agora que não sei nem quero voltar a ser como era antes?

- Você me prometeu uma escolha, Poseidon, e eu escolhi você. – Ecoou debilmente o suplício de pouco tempo antes. – Volte pra casa. Volte pra mim...

Atravessando a rua, três velinhas corcundas e maltrapilhas observavam a cena comentando entre si:

- Partiu.

A do meio concordou:

- Não volta.

- Não volta? – A última questionou, mas não foi mais que um sussurro.

Muito além do observar, outra pessoa também sente toda a intensidade daquela cena.

Encarando as próprias mãos que agora formigavam com mais força – e também o ventre, a garganta e os lábios – Circe começa a perceber o poder cru que habita o universo, repensando suas escolhas.

Quando foi que me tornei refém de artifícios?

Não podia dizer que convertera-se completamente ao comportamento passivo de Hécate, mas via seu ponto sob outra ótica agora. Para quê precisava de um pedaço de rocha que era nada além de uma promessa quando ali mesmo, entre os mortais que considerava tão patéticos, havia uma força naquela medida, chamando para si os fios do destino, dispondo-se a desemaranha-los e refazer o trabalho?

Um brilho magenta escorreu pelos seus dedos longilíneos, uma magia que não praticava há muito tempo, e um único pensamento ecoava em si.

Você verá, mãe. Vai ter orgulho de mim.

(Já tenho, minha criança.)

AmarrasOnde histórias criam vida. Descubra agora