Conchas & Prata - Capítulo 17

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França, 1885

Poseidon encarava o teto de sua cabine no Olympique.

Com os pés apoiados no tampo da mesa, ele traçava os contornos da velha bússola com a ponta dos dedos, sem precisar olhá-la para saber para onde apontava, ou em qual canto exato se localizava uma ranhura decorrente da vez em que quase fora apunhalado de raspão em uma briga no bar e o instrumento náutico o fizera passar ileso. Sorriu sozinho, recordando daquele momento de susto seguido por uma alegria nervosa, e esperando que aquela distração o ajudasse a calar as dúvidas em sua cabeça, pensando em nada.

Sabia que precisava fazer algo, mas o quê exatamente lhe escapava.

Por isso mesmo usara a viagem rápida de transporte de insumos para a região de Montpellier como desculpa para realizar a integração de Ícaro à tripulação e também - principalmente - como fuga do silêncio sepulcral de Atena. Na única vez que se viram depois da fatídica briga, ela fora fria como nunca antes. Distante, praticamente ausente, e aquilo quase o sufocara. Passar os dias enfurnado dentro de seu navio estava sendo sua única fonte de paz.

Ainda meio distraído, perdido nessas memórias, quando ouviu a porta ser aberta sem qualquer hesitação teve certeza de que tratava-se de Hermes, reportando-lhe alguma informação qualquer, e por isso nem preocupou-se em endireitar sua postura, apenas aguardando que ele desse início ao que quer que tivesse para lhe falar. Entretanto, quando após cerca de um minuto de silêncio perguntando-se que diabos seu imediato estava esperando, Poseidon escuta um pirraguear feminino, quase cai da cadeira, em assombro.

Temia deparar-se com longos cabelos castanhos e maliciosos olhos violeta, mas foi agraciado pela igualmente surpreendente visão de uma loira de orbes muito claras.

- Atena?!

- Desculpe-me por perturbá-lo em sua cabine, monsieur. Mas creio que precisamos conversar.

Se estivesse raciocinando corretamente e refletido sobre as palavras dela, provavelmente teria engolido em seco, mas seguia deveras impactado por sua presença ali e tudo que conseguiu lhe questionar foi:

- Co-como chegou aqui?

- Eu só... entrei.

Ela respondeu como se fosse muito óbvio.

Preciso repensar urgentemente as pessoas que tenho em minha equipe – faz troça mentalmente, embora seguisse extremamente intrigado – Como eles deixam uma pessoa simplesmente entrar no navio, sem ser notada?!

- Diabos. Bem, desculpe-me por não ter me preparado para recebê-la corretamente. Sei que esse ambiente não é exatamente agradável e...

- Está perfeitamente aceitável, não se preocupe comigo. – A moça fecha os olhos e respira profundamente por um instante antes de dar continuidade, como se lhe doesse fisicamente proferir as próximas palavras – Eu vim pedir-lhe desculpas por meu comportamento infantil nos últimos dias.

Oi?!

- Sei que você não tem obrigação nenhuma de entender a minha posição e não posso jamais querer te obrigar a agir de acordo com o que fantasiei ser o certo, pois não é responsabilidade sua corresponder às expectativas que criei para você e...

Não podendo mais suportar aquilo, Poseidon levanta-se.

- Chega. Pelo amor de Deus, pare. – Com a mão sob a têmpora e a voz quase tremendo de intensidade, ele a interrompe. – Jamais faça isso novamente, Atena. Não assuma essa postura submissa mesmo sabendo que tem razão apenas para "me agradar". Falo sério. Tenho zilhões de defeitos, não vou negar, mas esse não é um deles. Fui eu quem agi como um babaca e depois fugi como um garotinho amedrontado. Você não tem nada que pedir desculpas.

- Uau. Essa me pegou desprevenida. – Seus olhos azuis tinham praticamente dobrado de tamanho, frente à surpresa. – Se você continuar mudando sua postura com essa rapidez, não tenho certeza de que consigo acompanhar.

- Me perdoe, eu...

- Agora sou eu quem lhe peço algo, Poseidon. Tenha cuidado com suas palavras. Não faça promessas que não consegue ou não pretende cumprir. Se deseja mudar minha recente concepção sobre você, deixe que suas próximas ações falem por si só, está bem? No mais, aceito suas desculpas.

- Certo.

Ele repousa a bússola na mesa e, curiosamente, o norte da rosa dos ventos aponta para a direção da jovem.

- Temos uma trégua então?

Velhas inimizades tem o potencial de transformarem-se todos os dias, não? Ele não é mau. Isso pode dar certo... Depende de mim.

Algo similar ecoava na cabeça do capitão, enquanto ele assentia, estendendo a mão num cumprimento solene.

Eu posso dar um jeito de deixá-la ver meu melhor lado e fazer com que isso funcione, não? Depende de mim.

Uma espécie de corrente elétrica os percorreu após o toque, mas quietos e meio sem jeito, ambos culparam a estática.

-*-*-

Circe caminhava por sua ilha de pés descalços e a cabeça muito longe. Seu vestido lilás era de um tecido fluido, parecia um sonho que ondulava ao sabor do vento, mas apesar de poder ser comparada a uma miragem, fazia tempos que sua rotina estagnara-se num marasmo sem fim.

- Estou entediada.

Nem joias, nem servos, nem amantes, muito menos seus velhos livros de magia a animavam mais. Não se sentia preparada para lidar com um embate com sua progenitora no momento, ainda que aquilo pudesse ser só picuinha sua.

Por hora, queria alguma coisa que lhe incendiasse as veias e a fizesse se sentir viva. Algo poderoso, algo antigo, algo...

Uma de suas sobrancelhas elevou-se num arco perfeito e o riso malicioso que espalhou-se por seus lábios era, ao mesmo tempo, lascivo e doce, como o mais potente dos venenos.

Emitiu um assobio alto e logo uma gaivota desceu num voo rasante até pousar a seus pés, submissa.

- Acho que está na hora de providenciar alguma diversão.

AmarrasOnde histórias criam vida. Descubra agora