Mar Mediterrâneo (Águas sob o domínio da França), 1883
"Não é em terra que se fazem os marinheiros,
mas no oceano, encarando a tempestade."
- Ressurreição, Machado de Assis
O imponente navio balançava suavemente ao sabor das ondas, com o Sol à pino no céu e os ventos dando uma trégua após a fustigante tempestade que enfrentaram na noite anterior. Dois marujos ocupavam-se de pequenos ajustes no convés, mas a maioria da tripulação se permitia desfrutar de um pesado cochilo como complemento de sua refeição.
As barrigas estavam cheias e seus espíritos igualmente satisfeitos em decorrência do sucesso da última difícil negociação de seu Capitão com o velho mercador da Ilha de Córsega, que lhes rendera a conquista dos últimos produtos encomendados pela nobre Hécate Monique Lachance.
Poseidon Legrand, o comandante do navio em questão, não se permitia descansar totalmente antes de atracar no último porto de seu destino e, portanto, revisava a rota restante de sua viagem de retorno para garantir que as coordenadas estavam corretas e que a lista de compradores e suas respectivas mercadorias estavam devidamente alinhadas.
Um sorriso trespassou seu rosto ao recordar-se do embate de cifras costumeiro que travara com o ancião Marlon Pierre na véspera. Qualquer dia ainda teria de dar um jeito de agradecer-lhe, pois grande parte de sua fama e sucesso como transportador se davam por ser o único capaz de obter resultados vantajosos de negociações com o temível Marlon. De fato, sempre fora muito bom de lábia, quase tanto quanto na condução do leme, mas naquele caso em especial desconfiava que sua ventura se dava especialmente pelo velho gostar dele de alguma forma.
Em meio a isso, tocava inconscientemente a pequena marca gravada a ferro em seu antebraço, pensando nas aventuras que compartilharia com Hades quando aportasse em Marselha. Foi quando notou uma mudança súbita da temperatura do ar. As ondas, já calmas, pareceram silenciar de vez e o ar assobiava baixinho, quase como num zumbido de estática, e então um pequeno rangido se fez ouvir nas tábuas defronte a porta de sua cabine. A alteração sonora era quase que imperceptível, mas seu ouvido treinado para os perigos do mar e das batalhas reconheceria barulhos como aquele em qualquer circunstância.
Rapidamente desembainhou uma adaga de ferro fundido de seu cinto, respirou fundo e arriscou seu palpite em voz alta, ainda antes de a porta ser aberta:
- Circe.
Quem escutasse seu firme timbre de trovão jamais imaginaria o frio que congelava suas entranhas por dentro, enquanto o homem maquinava a melhor forma de escapar da enrascada em que poderia estar se enfiando.
Uma mulher ricamente vestida de verde-água e ouro adentrou o aposento, perscrutando cada centímetro do ambiente com seus olhos de desdém.
- Alegre-se, querido. Para sua sorte, hoje estou sem tempo para joguinhos ou para enfezar-me pelo fato de você me haver negado minha entrada triunfal surpresa. Portanto dê-me logo o fogo de dragão, pequeno marinheiro, e ninguém sairá ferido.
Fogo de dragão? Mas que p...
- Em primeiro lugar, não sou nenhum "pequeno marinheiro". Ou você é assim tão fácil de detectar para qualquer um? Achei que se tratava da grande e poderosa Circe, a feiticeira dos mares que inspirou histórias sobre sereias, atraindo homem para além da amurada, afogando-os ou os transformando em animais...
O silêncio raivoso da mulher lhe dizia que estava certo, mas também que não devia abusar e medir bem suas palavras, pois um passo em falso seria o seu fim e de todos seus homens. Diabos, teria que controlar sua boca grande. Essa não seria tarefa fácil, pois diante dele estava a causa viva da perda de inúmeras vidas de companheiros nas águas mais afastadas da costa. Seu peito tempestuoso ardia em raiva, mas buscou seu controle e prosseguiu:
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Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...