Madeira & Pérolas - Capítulo 13

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França, 1885

Dois dias é tempo suficiente para clarear as ideias ou confundi-las de vez. Atena pavorosamente estava mais inclinada para a segunda opção.

Revivera aquele momento vivido em um dos cômodos da casa de sua tia com toda a riqueza de detalhes possível, e não entendia. Fora além e analisara cada segundo que passara na companhia daquela incógnita em forma de homem desde que o conhecera e, ainda assim, em vão. Nada fazia sentido.

O que diabos há com você, Poseidon? Você afirma ter descoberto meu segredo, pois agora é a vez do seu.

Era a resolução em pessoa (impaciência também), esperando-o chegar. Quando o fez, ele desceu do coche com o sorriso largo que já era sua marca registrada e proferiu, beijando-lhe a mão num cumprimento suave:

- Bom dia, futura esposa.

Ela conteve um ofegar de surpresa, afronta e... e... Francamente, não sabia nomear aquilo.

- Você está fazendo um pedido? Porque eu ainda não aceitei nada.

- Uso correto de palavras. Ainda não, mas vai.

- Humpft, seu convencido.

Atena o odeia por saber que está certo, que escolherá honrar o acordo por vontade própria, de qualquer modo. Odeia-o ainda um pouco mais por ter ciência de que, de fato, ele não é assim tão detestável de todo.

O dia transcorre assim: ela se contém durante a ida, se contém enquanto ele lhe conta detalhes irrelevantes da construção do lugar (como se tivesse cabeça para aquilo agora!), se contém até enquanto compram a baguete pequena que darão de comer aos patos do lago, mas quando estão defronte da lagoa, as aves amontoando-se a sua frente para disputarem os pedacinhos de pão lançados, ela não pode mais esperar:

- Por que está fazendo isso, Poseidon?

- Jogando as migalhas de pão? Ora, para que os pobres bichinhos se alimentem e...

- Não. Não é isso. Se casar comigo sem saber de nada era uma coisa, mas depois de nossa conversa? O que posso te oferecer? É alguma mulher que você deseja fazer ciúmes ao ser visto comigo? Deseja ter amantes e quer alguém que não se importe? Ou...

- Não seja tola, Atena. Por acaso pareço o tipo de homem que fica fazendo esses joguinhos?

- Não. Por isso mesmo que não faz sentido. Estive refletindo sobre o assunto e não compreendo o que você ganha me cortejando.

Poseidon seguiu cortando o pão em pedaços minúsculos, com toda a naturalidade.

- Uma esposa?

- Não subestime minha inteligência, monsieur Legrand. Não pode ser algo tão simples. Você poderia ter qualquer mulher. O que, em nome de Deus, iria querer comigo?

Liberdade. Vida. Tudo.

- Eu não desejo qualquer mulher.

- Espera mesmo que eu acredite que está irremediavelmente apaixonado por mim após uns esparsos encontros? Pois essa é a desculpa mais deslavada que...

- E quem falou em paixão, mulher? Você é inteligente, muito mais do que a média, e aprecio isso. É bela, elegante e parece perfeitamente capaz de cumprir com as obrigações implicadas por minha posição social mais abastada. Tenho certeza que não ficará fazendo drama quando eu tiver que fazer longas viagens marítimas e, por fim, sua recusa a ceder aos meus encantos me diverte.

Sinceramente, ela não sabia bem o porquê ficara tão incomodada. Não só não queria como também não acreditaria caso ele lhe confessasse alguma espécie de sentimento. Essa frieza e objetividade com que ele expusera os prós de um casamento consigo deveria tê-la tranquilizado. Com racionalidade ela sabia lidar. Sem pressões. Sem devoção desmedida. Apenas um teatro de aparências.

Por que aquilo subitamente lhe parecia tão ruim?

E aquela última parte. Me diverte, ele havia dito. Me diverte! Ora, ela não era nenhuma palhaça. Ultrajada, Atena estaca no lugar:

- Eu serei uma espécie de desafio então? Vai passar a vida inteira tentando me dobrar?

- Por quê? Acha que perderia no teste de resistência?

Ele brinca, pois tendia a tagarelar quando estava nervoso e porque era mais fácil provocar-lhe com novas perguntas, já que simplesmente não poderia lhe dizer a verdade:

Que não se relacionar com alguém era tudo que ele mais precisava.

Que aquela condição dela talvez fosse o que detalhe que lhe salvasse.

Que era ela quem estaria lhe fazendo um favor.

Vinha forçando-se a pensar que toda aquela situação tornava o acordo proveitoso para os dois, que ela jamais teria outra oportunidade de salvar o destino financeiro da família e manter seu desejo de castidade. Qualquer outra pessoa lhe ofertaria um destino ou outro, apenas. Ele não. Com ele, ela poderia ter os dois.

Mas a verdade é que, quanto mais tempo passava, ele se dava conta que era o privilegiado da história. Por isso mesmo temia, mais do que nunca, que ela ou sua família descobrissem sobre sua maldição. Não podia correr o risco de parecer patético, de ser tachado de maluco, de perdê-la.

Subitamente, entretanto, ao ver seus olhos azuis crispados em fúria, o medo do ridículo não era nada comparado ao pavor silencioso que lhe tomou ao dar-se conta de que agora ela pensaria ter sido escolhida apenas por ser uma virgem esquisitona qualquer, que não o interessava e, portanto, não lhe ofereceria nenhum risco além de uma boa piada.

(Se ela soubesse que fora exatamente o contrário. Que o fascínio exercido por sua companhia fora o que quase o fizera desistir de levar o casamento a cabo por medo de não resistir a seus encantos, como se impelido pelo canto da mais poderosa sereia...)

Mas agora ele nada seria além de um canalha.

- Sabe Poseidon, você tinha conseguido me enganar. Por um instante depois da nossa última conversa eu cheguei a pensar que você era melhor, que era diferente, compreensivo, que talvez apenas algo estivesse me escapando para lhe entender. Mas agora... Neste momento só consigo ter nojo de você.

Aquilo doeu como se ela o tivesse esbofeteado, mas era bom. Nojo a ajudaria a ficar longe, pra sempre. Aquele olhar vazio assombraria sua mente e o faria permanecer em seu lugar. Sozinho.

Dentro da carruagem, no caminho de volta, cada um encarava fixamente sua janela, sem a mais remota sugestão de conversa e as verdades não ditas os devoravam por dentro. 

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