França, 1885
O sol nasce sobre eles como a sombra de uma árvore frondosa que se estende vagarosa e gentil. Quando desperta de seu sono, antes mesmo de abrir os olhos, Poseidon prende a respiração por um instante, apavorado pela possibilidade de apenas ter sonhado os acontecimentos do dia anterior. Com o polegar, entretanto, toca o metal frio que circunda seu dedo anelar esquerdo e, sorrindo, pisca para ajustar a vista ao brilho cálido do início da manhã, sendo recebido pela imagem de uma Atena ainda profundamente adormecida repousando a seu lado.
Permite-se desfrutar da visão por alguns minutos e então, tomando cuidado para mover o colchão o menos possível, levanta-se para fazer sua higiene matinal e vestir-se, permitindo que ela descanse um pouquinho mais. Feito isso, porém, não há muito mais o que possa adiantar e se ocupar sozinho, portanto decide acordá-la.
- Ei, Atena. – Ele pousa a mão delicadamente em seu ombro, aproveitando para tirar uma mecha de cabelo cruzando a frente de seu rosto. – Vamos, é hora de acordar.
Sua pálpebras levantam-se ligeiramente, ainda pesadas de sono, apenas para cerrarem-se novamente quando focalizam a janela aberta que permite a visão para o dia ainda escuro lá fora. Com um grunhido, ela reclama:
- É cedo demais, Poseidon. O que você tem na cabeça? Imaginei que despertaria antes de você, não o contrário.
Uma Atena sonolenta tinha ainda menos papas na língua, aparentemente. O moreno decidiu guardar essa interessante observação mental para eventuais necessidades futuras.
- Fico feliz em surpreender. – Sem ceder aos pedidos da esposa, entretanto, chacoalhou seu ombro de leve mais uma vez – Vamos. Sem manha, Atena. Tenho que te apresentar para os empregados e garantir que você conheça a propriedade inteirinha no dia de hoje. Não há tempo a perder...
Agarrando o travesseiro dele e o colocando sobre o rosto, a frase seguinte de Atena saiu abafada, mas Poseidon a ouviu claramente:
- Me deixe dormir ou farei um motim.
- Você está fazendo uma piadinha sobre pirataria pra mim?
- Talvez.
Se o sorriso travesso no canto dos lábios dela fosse o prenúncio de um bom dia, Poseidon se sentia abençoado.
-*-*-
Há de se imaginar que um homem com vivência vasta em aventuras marinhas, culturas estrangeiras e a adrenalina das batalhas se entediasse com uma rotina tão tranquila, mas a verdade é que Poseidon não poderia estar mais feliz. Descobria fascinantes peripécias em cada pequeno acontecimento do dia a dia: da dança intricada de braços e pernas que por vezes teimavam em amanhecer entrelaçados e do rubor que pintava ambas as faces quando isso acontecia, passando pela sensação agradável que era poder aprumar sua gravata pela manhã tendo como contemplar no reflexo do espelho com a nesga do olhar a visão de Atena penteando os longos cabelos e não esquecendo a mesa de café da manhã, sempre repleta de delicias na mesma proporção que se multiplicavam as conversas a seu redor. A russa demonstrava dar-se muito bem com Perséfone e o sorriso de Jacques diante desta alegre paz só não ultrapassava o seu próprio.
Quando saia cedo para firmar algum negócio comercial ou acertar detalhes do próximo grande itinerário com o barco, Poseidon sentia-se pleno, sabendo possuir um porto-seguro para o qual retornar.
Aliviava-lhe tanto que ele e Atena estivessem se entendendo! Haviam criado um certo hábito de conversarem sobre os mais aleatórios assuntos antes de dormir, ela trajando camisolas muito menos reveladoras que a da noite de núpcias, desembaraçando os fios loiros, e ele já acomodado sobre as cobertas, tentando forçar seu afeto para retroceder ao campo da amizade sem sucesso. O capitão compartilhara histórias de como decidira navegar, como o instinto lhe vinha muito natural desde pequeno e a água parecia lhe chamar. Falou de lendas famosas entre os marinheiros tomando cuidado para deixar Circe bem longe da conversa e, em contrapartida, ouviu sobre o que era verdade e o que era mentira acerca do que se falava sobre o império russo. Aprendeu sobre a fantasia de contos como o de Vasilisa e Baba Yaga, sobre a arquitetura da Catedral de Nossa Senhora de Kazan e de como foi ser educada por clérigos. Falavam até os olhos pesarem e talvez essa fosse a tática que ambos encontraram para não pensar demais no fato de estarem compartilhando a mesma cama noite após noite, sem se tocarem de verdade, mas perto demais para quem não queria contato de todo.
As semanas passavam e ocasionalmente durante o dia igualmente compartilhavam alguns momentos dignos de nota. Já haviam compartilhado o folheto de hinos na missa dominical conduzida por Dionísio; ido juntos às compras no centro de Marselha, Atena chegando a consultar a opinião de Poseidon acerca de qual dos tecidos deveria optar para o novo vestido; tinham visitado os Hugh para um chá da tarde e Poseidon até chegou a ajudar Apolo com o baú de livros que levaria para a Universidade. O plano de convencer Madame Durand a presenteá-los com mais delícias açucaradas foi prontamente aderido por sua cunhada e os três passaram uma tarde inteira enfurnados na cozinha, folheando um livro grosso repleto de receitas para escolherem quais doces gostariam de provar, numa atividade que mostrou-se divertidíssima.
(Amélie também já se apaixonara perdidamente pela russa sagaz e atenciosa e Poseidon se perguntava como tivera a audácia de pensar estar imune a seus encantos no passado.)
Agora andavam lado a lado no calçamento de um quarteirão próximo à praia. Havia construções bloqueando a vista do oceano, mas a maresia os alcançava como um lembrete de que estavam em casa.
Uma fileira de réverbères¹ providenciava pontos de luz amarelada muito belos naquele céu de tom lilás e quando a garoa começou, Atena não reclamou de como aquilo estragaria seu cabelo ou como as roupas de ambos ficariam encharcadas se seguissem caminhando com aquela vagarosidade. Em vez disso, sem fazer qualquer menção de se cobrir e rejeitando veementemente o casaco que o moreno lhe ofereceu, fechou os olhos apreciando a bênção fresca dos céus.
Talvez pressentindo o olhar fixado em si, agora já há poucos metros da mansão, Atena abriu o olho direito e espiou a expressão maravilhada do homem que a admirava.
- O que foi, Poseidon?
- Você nem se abalou pela chuva.
- Mas é claro. Por que me abalaria? É só água...
- Está vendo? É por isso que eu te amo...
Paralisado e afundando em si mesmo, repreendendo-se por sua língua impulsiva, Poseidon percebe o que deixou escapar. Não há como fugir, ele sabe. Atena o ouviu perfeitamente. Está escrito em cada linha de sua expressão.
É por isso que, não podendo conceber nenhuma desculpa plausível, apenas solta sua mão e adentra a residência.
Tenta aparentar normalidade ao mesmo tempo que evita a todo custo encará-la durante o jantar, temendo imensamente o que encontraria escrito nos olhos azuis.
À noite, bem quando faz o possível para fingir estar adormecido, desejando algumas horas de vantagem para decidir o que fazer pela manhã, sente sua esposa depositar um beijo brevíssimo no topo de sua cabeça antes de deitar-se ao seu lado e isso o faz rezar – para o Deus católico que foi apresentado na infância, para a variedade infinita de divindades que descobriu ao longo dos anos e também para o próprio Destino – pedindo para que aquele ósculo suave não fosse um adeus.
{ ¹ Réverbères = Postes de iluminação pública, tipicamente franceses }
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Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...