São Petersburgo, 1885
Alexandre II é assassinado pela Vontade do Povo. Desde a guerra contra o Império Otomano a Rússia enfrentava repressão e restrição de gastos públicos, mas o clima conseguiu ficar ainda mais pesado com as reformas agrárias e trabalhistas.
Não era uma boa época para se ter relações com a aristocracia.
Zeus mal dormira na última semana, perguntando-se até que ponto ser um banqueiro de renome garantiria que seu negócio não fosse prejudicado. Estava no fogo cruzado: mesmo sendo, teoricamente, um cidadão comum, foram suas ligações com a realeza que o fizeram chegar aonde estava - fora nomeado barão, por deus! - e agora eram esses mesmos laços que temia transformarem-no em um alvo potencial.
Medos o rodeavam por todos os lados, mal permitindo que saboreasse seu kvass¹ naquela reunião familiar. Hera parecia concentrada na história contada efusivamente por sua irmã, Afrodite, enquanto que seu enteado, Apolo, compartilhava do ar taciturno do patriarca da família Hugh, deslocado e muito quieto naquela sala fria, ainda que a lareira estivesse acesa. Talvez o ambiente fosse mesmo muito soturno para uma alma primaveril como a do jovem Gareth.
Sempre muito boa em ler emoções, a antiga caçula da família Heinz tomou a mão esquerda do cunhado nas suas e perguntou-lhe:
- Querido, o que lhe aflige? Está tão distante... Por acaso minhas aventuras pela Europa lhe são assim tão enfadonhas? Porque assim você me ofende, lembre-se que sou visita...
Seu sorriso aberto indicava que sua falsa indignação não passava de brincadeira, mas que buscava deixá-lo confortável para se abrir.
- Imagine. Suas histórias são sempre um deleite, madame Gareth. É que o clima por aqui não anda dos melhores, com tudo que tem ocorrido na Rússia nos últimos meses...
A mulher o encarou com os olhos azuis brilhando como se houvesse acabado de ter uma ideia genial:
- Mon cher², por que vocês não vêm para a França comigo?
Zeus não pôde evitar assumir uma expressão desgostosa de imediato, igualmente sem entender aonde ela pretendia chegar com aquela linha de pensamento. Hera, igualmente, encarava sua irmã com choque.
- Não me olhem assim, como se eu estivesse me aliando ao próprio Napoleão. Essa guerra já terminou há tempos, vencemos e fim. Nos aproveitarmos um pouco do que eles têm a oferecer não é nenhum pecado, aliás, eu chamaria de reparação histórica por tudo que aquele baixinho insolente nos fez passar... E Apolo, você jamais ouviu isso de mim. Se sua avó sonhar que eu disse algo assim na sua presença, certeza que ela vai dar um jeito de tirar-me a herança do seu pai.
O jovem riu largamente, o jeito bem-humorado e meio exótico de sua madrasta lhe recordando o porquê agradeceu aos céus por seu pai ter-se casado novamente justamente com aquela russa maluca, um ano antes de falecer.
- Afrodite, você não cansa de me surpreender.
- Ora, eu sou uma mulher inteligente, mas como uma boa dama mantenho alguns dos meus dotes ocultos, para não oprimir os cavalheiros, é claro. - Acrescentou com um risinho - Enfim, Paris está fervilhando! E não só de vestidos e rouges³, como gosto de ressaltar. Lá há vendas de coisas oriundas de todos os lugares do mundo. Eu tenho certeza de que um homem com a presença de Zeus conseguiria conquistar um espaço, realizar um acordo, o que quer que seja e...
O barão a interrompe antes que prosseguisse tagarelando e descambasse para outro lado que não os servisse naquela delicada situação.
- Hera. Sua irmã pode ter razão... Certamente devo ser capaz de conseguir um acordo comercial.
- E se você conseguir se unir a algum investidor antes que esses bárbaros tomem nossas posses...
- Então podemos estar salvos.
O ambiente recaiu num silêncio contemplativo, como se apenas ali todos os ocupantes se permitissem respirar.
- Fabuloso! - Afrodite exclama, por fim, sorrindo de orelha a orelha - Apolo, querido, vá ajudar suas primas a arrumarem seus pertences. Faremos uma viagem!
-*-*-
Depois de receber a aprovação de Hefesto, contador italiano com quem Zeus se correspondia há anos, o patriarca dos Hugh decide dedicar-se a essa empreitada e ele e sua família desembarcam no porto de Marselha no dia 27 de janeiro de 1885. Guiado pela cunhada, Zeus inicia sua missão de conhecer pessoas influentes e possíveis parceiros comerciais para que fosse capaz de diminuir as taxas e levantar seus negócios, sobrevivendo à crise.
Recebe vários "nãos" de menores exportadores, um contato indicando outro até alguém lhe sugerir falar diretamente com o maior comerciante exportador da região, quiçá de toda a França: Poseidon Legrand. O homem tinha fama de corsário e tamanho império conquistado com tão pouca idade fazia com que toda uma mitologia houvesse sido construída a seu redor: de negócios escusos com bruxas até batalhas com monstros marinhos e serviços para a Coroa. Apesar de tudo, pertencia a uma família tradicional e, já sem muita fé mas recusando-se a retornar para casa sem tentar de tudo, Zeus resolve conhecê-lo.
Quando o faz, é uma tarde fria e nublada na região portuária, mas a imagem do homem imponente trajando uma sobrecasaca de couro estendendo-lhe a mão e ouvindo-o atentamente enquanto trocam informações sobre taxas de câmbio e os produtos mais rentáveis para se transportar, vê que ele poderia ser sua salvação e isso o deixa apreensivo, pois a cada fala percebe o quão sagaz e visionário aquele marinheiro é, e que não poderia se dar ao luxo de perder a oportunidade de firmar aquela parceria.
- Sua família veio para cá junto com o senhor?
- Sim. Podemos dizer que tiramos férias.
- Maravilha! Você disse que tem três filhas, não é mesmo? Acredito que elas vão adorar fazer compras em Paris.
Zeus não pode evitar rir timidamente.
- O senhor não conhece minhas filhas, monsieur Legrand. Isso pode seduzir alguém como minha cunhada, vaidosa que só ela, mas minhas meninas são deveras... contidas. Minha primogênita, inclusive, foi criada junto a um convento, então você pode imaginar...
Poseidon não sabe bem explicar o que exatamente se acendeu em sua mente naquele momento, mas subitamente se vê genuinamente interessado naquele tópico da conversa. A palavra "convento" ressoando como sinos em sua mente.
- Uma de suas filhas deseja se tornar freira, então?
Zeus também não sabe ao certo o que acontece naquele instante suspenso no tempo, mas uma ideia meio indistinta começa a se formar em si.
Não tenho como oferecer maiores benefícios em nenhum acordo para convencê-lo, a menos que...
- Não. O parto dela foi muito difícil, quase perdi a ela e a minha esposa e portanto ela teve uma criação mais reclusa, mas nada além disso.
Convento. Acordo. Convento. Acordo.
Numa última cartada de esperança de salvar o patrimônio de sua família, Zeus profere as próximas palavras sem plena consciência do que fazia, quase como se algo maior que ele o impelisse a prosseguir.
- Desculpe-me a indiscrição, mas não pude deixar de notar que você é um homem solteiro... Há algum motivo particular para que não tenha se casado ainda? Já está prometido a alguma noiva?
Convento. Acordo. Convento.
- Não, nenhum motivo especial. Apenas não... encontrei a pessoa certa ainda.
Acordo. Convento.
- Pode ser apenas a prepotência de um pai orgulhoso, mas acredito que você e Atena se dariam muito bem...
Convento. Acordo.
- Seria um prazer conhecê-la, monsieur Hugh.
À distância, um estrondo se faz ouvir. Pássaros grasnam, voando em debandada e as linhas do destino, escritas com tempestade.
{¹ Kvass = Bebida típica russa / ² Mon cher = Meu querido / ³ Rouge = A tradução literal é "vermelho", trata-se do blush usado para dar um aspecto rosado às bochechas}
VOCÊ ESTÁ LENDO
Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...